Cavalgada Heroica




FILMES QUE EU AMO / sessão 14

1.  As Quinzenas do Bom Cinema
Primeiro os lugares comuns, que por serem comuns não deixam de ser verdadeiros. A) John Ford é um dos maiores cineastas de sempre e um dos que melhor interpretou a noção de clássico. B) Foi o autor que mais e melhores westerns realizou ao longo da sua vasta carreira. Posto isto, falaremos de “Cavalgada Heroica” mais adiante e fiquemos pelo western como género. Um dos que maiores prazeres me ofereceu ao longo da vida. Hoje o western só aparece esporadicamente, mas durante muitas décadas ele foi rei e senhor das plateias. Era o filme de acção por excelência. Ricos e pobres, intelectuais e populares não perdiam o seu western, que começara ainda no mudo por ser filme de cowboys, com bons e maus vestidos de branco ou de preto para se distinguirem nas cenas de pancadaria. Depois veio o som e a complexidade das intrigas, começaram a discutir-se grandes temas, sociais, políticos, racistas, etc., e John Ford teve um papel capital nesta assunção de maturidade do western. Nos anos 50 e 60, o western intelectualizou-se ainda mais, com recurso à sociologia, à psicanálise, ao debate político, à sexualidade e ao erotismo. Mas, a partir dos anos 70/80, foi o colapso, as suas histórias foram substituídas por aventuras espaciais e em vez de “Rio Bravo” passou a existir “Guerra das Estelas”. Só raramente aparece um grande western, um “Imperdoável” ou um “Django Libertado”.
Mas, nos anos 60, as salas de cinema enchiam-se para ver westerns. Durante oito temporadas fui colaborador do Artur Ramos que dava o nome a uma iniciativa magnífica que decorria no excelente cinema Monumental, em Lisboa. Eram as “Quinzenas do Bom Cinema”, que todas as segundas, quartas e sextas-feiras, pelas 18, 30 horas, ofereciam, durante duas semanas, obras selecionadas, dedicadas a um determinado tema, que ia desde um realizador, um actor, um género ou uma cinematografia.



Por essa altura, eu era uma espécie de secretário particular do Artur Ramos, querido amigo com quem muito aprendi. Eu trabalhava nas Quinzenas, tinha liberdade para selecionar temas, filmes, marcá-los nas distribuidoras, escrever os programas e esperar pelo acordo do homem que dava a cara e aval à iniciativa. Artur Ramos era um excelente encenador de teatro, um dos nossos melhores realizadores de televisão, na RTP, e aventurou-se igualmente pelo cinema, mas com resultados pouco satisfatórios. O seu “Pássaros com Asas Cortadas” foi percursor do Novo Cinema Português, mas por aí se ficou.
Nessa altura não havia vídeos ou dvds, muito menos Blu-ray. O que se projectava, e a única forma de ter acesso a um filme, era uma cópia de 35 milímetros que as distribuidoras mandavam vir do país de origem do filme e de que passavam a dispor dos direitos normalmente durante 5 anos. Alguns distribuidores “esqueciam-se” do prazo e as cópias circulavam até caírem de podres. Mas o habitual era o filme estrear numa sala de Lisboa, depois no Porto, a seguir passava pelas principais praças do país, muitas vezes viajava até às colónias, regressava, fazia o périplo pelas salas de bairro, e ia acabar nos “piolhos” por entre os impropérios das plateias populares que já não viam metade da metragem original. Hoje em dia estreiam-se 30, 50 ou 80 cópias numa semana, e o filme é explorado na horizontal. Tudo se passa em poucas semanas, o filme vai saindo de salas, ate ficar só numa ou duas. Naquela altura, o filme era explorado na vertical. Vinha uma ou duas cópias, estreava-se numa ou duas salas, e aí estava o tempo que durasse a predilecção do público. A “Música no Coração” esteve dois anos em cartaz no Tivoli.
Há quem olhe para esses tempos com saudade e nostalgia. Os filmes eram melhores, mas as condições de projecção não sei se seriam. Ao fim de alguns dias, as cópias estavam riscadas, amputadas (o projecionista de “Cinema Paraíso” ia-lhes cortando todas as cenas de beijos), as máquinas não eram boas muitas vezes e o filme era projectado dessincronizado, enfim muitas agruras para os cinéfilos. Mesmo para aqueles que seguiam as “Quinzenas do Bom Cinema”, entre 1965 e 1973, ou que acompanhavam outras sessões clássicas, como as que aconteciam no Cinema Império, numa organização do crítico Jorge Pelayo, ou no Tivoli. Havia mesmo “Os Grandes Romances de Amor”, no Politeama, dirigidos pelo jornalista Portal da Costa, que sorteava, no intervalo, ramos de flores pela distinta assistência, maioritariamente senhoras. Uma tarde fui lá ver “O Grande Amor da Minha Vida” e regressei a casa com um flamejante ramo de flores, que ofereci à minha mãe. Tempos divertidos.


    
2. CAVALGADA HERÓICA
Peter Bogdanovich, que entrevistava John Ford, perguntou-lhe um dia o que fazia, ao que o cineasta respondeu, com simplicidade “faço westerns”. Na verdade, desde o período mudo do cinema até 1966, altura em que estreou o seu derradeiro título, “Sete Mulheres”, John Ford dirigiu alguns dos mais belos westerns na história do cinema. Como André Bazin dizia que o “western” era o cinema americano por excelência”, pode concluir-se que este cineasta terá realizado alguns dos mais importantes filmes da História do Cinema.
Este homem começou a trabalhar no cinema na década de dez do século XX e assinou cerca de 150 títulos, muitos dos quais ainda em tempo do cinema mudo. Depois, nunca descurou o Oeste, mas dirigiu um pouco de tudo, dramas sociais ou sentimentais, filmes de guerra, históricos, filmes biográficos e políticos, e se não assinou comédias retintas, todos os trabalhos que lhe passavam pelas mãos não eram isentos de um humor muito especial. Com antepassados irlandeses que lhe marcaram a personalidade, John Ford é autor de quem se ama não um filme, mas que coloca um enorme dilema a quem tem de escolher apenas um. De “As Vinhas da Ira” a “O Vale era Verde”, de “O Último Hurrah” a “Uma Vida Inteira” começa a seleção a ser difícil, mas quando se entra nos westerns, perdemo-nos completamente. Será “A Desaparecida” o melhor western de sempre? Mas que dizer de “Forte Apache”, “A Paixão dos Fortes”, “Os Dominadores”, “A Caravana Perdida”, “Rio Grande”, “Os Cavaleiros”, “O Sargento Negro”; ““O Homem Que Matou Liberty Valance” ou “O Grande Combate”, para só citar alguns?
Este republicano e conservador, patriota e algo puritano, era, todavia, um homem de grande dignidade e sensibilidade. A sua formação não o impediu de defender um amigo acusado de ser comunista perante a Comissão das Actividades Antiamericanas, durante o macartismo. Todas as suas obras são a apologia da amizade e de uma certa honestidade de comportamento, mesmo que por vezes ela se vá encontrar onde menos se espera e não exista onde mais se apregoa. Entramos assim em “Cavalgada Heroica” (1939), um dos exemplos mais radicais de um cinema clássico, linear, sem truques, claro e de uma simplicidade de meios admirável. Ford limita-se a colocar a câmara no local ideal (há quem diga que um plano só se pode filmar de um certo angulo e Ford acertava sempre nessa escolha) e registar a acção que decorria à sua frente. Tinha por hábito dizer que o cinema eram “moving pictures”, eram as pessoas que se moviam não a câmara. “Cavalgada Heroica”, neste aspecto, é lapidar. Movimentos de câmara não há muitos e limita-se a máquina a acompanhar um movimento de pessoas, carruagem ou cavalos. Nada de deslocações gratuitas da câmara para criar efeitos.
Mas os efeitos estão lá. Não são gratuitos, são essenciais. A apresentação de Ringo Kid (John Wayne) é um momento de antologia numa obra quase sempre discreta e sóbria na apresentação das personagens. A diligência sobe uma pequena colina, ouve-se um tiro, surge no alto do montículo o cowboy com a sela numa mão e uma espingarda na outra. Depois, a câmara faz um rápido travelling até chegar ao rosto de John Wayne e percebe-se desde logo que estamos na presença do protagonista até aí invisível. Chegou o herói. Lição de cinema. É o único movimento deste género que se utiliza ao longo de todo o filme.


Este filme, que se passa nas planícies e nos vales de Monument Valley, o cenário por excelência de John Ford a partir daí, dado que “Stagecoach” foi pela primeira vez escolhido pelo cineasta, é um verdadeiro paradoxo: cenário de exteriores mais lato não pode imaginar-se e, no entanto, estamos na presença de um verdadeiro huis-clos onde se confrontam diversas personalidades.
1880. Numa diligência que parte de Tonto, no Arizona, com destino a Lordsburg, no Novo México, reúnem-se diversas figuras. A carruagem é conduzida por Buck (Andy Devine), que é acompanhado pelo Marshall Curley Wilcox (George Bancroft). No interior, viajam duas figuras expulsas da cidade pela “liga da moral e da decência”, acusadas de comportamento impróprio: uma prostituta, Dallas (Claire Trevor) e o médico Doc Josiah Boone (Thomas Mitchell), alcoolizado e desiludido da vida. Mrs. Lucy Mallory (Louise Platt), grávida, vai ao encontro do marido, um militar em missão no território. Um galante jogador de cartas, Hatfield, (John Carradine), oferece-se para proteger a dama, enquanto Samuel Peacock (Donald Meek), um vendedor ambulante de whisky, é vigorosamente assediado pelo médico que não larga a mala de amostras etílicas do vizinho. Já a caminho, à saída da cidade, junta-se-lhes o banqueiro Ellsworth Henry Gatewood (Berton Churchill) que acaba de fazer um desfalque e procura afastar-se do local do crime. Mais adiante, surge o já referido Ringo Kid (John Wayne) que anda perseguido pelas autoridades por procurar vingar a morte de um irmão, assassinado por três bandoleiros que ele tenta localizar de terra em terra. Estas as personagens. Mas a chave que as fecha no interior da diligência (e mesmo no interior de estações de mudas de cavalos) é a ameaça dos apaches em pé de guerra, comandados pelo lendário Jerónimo. Esta situação permite a John Ford vários exercícios que demonstram a mestria do seu trabalho, mas igualmente a sua sensibilidade e o talento plástico e poético, para lá de oferecer uma lição de um humanismo sem preconceitos.
Nesta paisagem árida e agreste, os que aparentemente se regem pelos princípios mais rígidos e puritanos, são objectivamente                             os vilões da história. O banqueiro é odioso e a senhora grávida principia por se afastar cautelosamente da prostituta, mas afinal o cowboy perseguido, a prostituta rejeitada, o médico alcoolizado ou o jogador inveterado são aqueles que se mostram mais generosos e mais fiáveis de sentimentos e comportamento. Notável é a forma como o realizador nos vai definindo as personagens, sem maniqueísmo, sem simplismos, fazendo-as evoluir ao sabor do tempo. Cada plano de Ford é um exemplo de qualidade plástica, mas igualmente de funcionalidade descritiva. Nada acontece por acaso. Quando o banqueiro nos é apresentado, a iluminação por trás dele remete para uma cruz projectada através da janela. A austeridade da figura é caracterizada igualmente por esse efeito de luz. Tudo isto enquanto planeia a fuga e dá à mulher dinheiro para as compras, sem que esta desconfie que é o último.
A qualidade fotográfica de Bert Glennon é admirável, sofrendo uma vincada influência do expressionismo na belíssima iluminação. Há cenas entre John Wayne e Claire Trevor ao longo de corredores e vielas explorados em profundidade de campo que deslumbram. Ford alterna como ninguém o intimismo mais discreto, mas mais intenso, com acções de forte aparato, como o ataque dos apaches. Consegue-se, ao longo da obra, um equilíbrio invulgar entre a epopeia colectiva e o caso individual, interligando-as as aventuras pessoais com o destino de uma pequena comunidade. Os actores, a maior parte deles tornar-se-ia seus fiéis colaboradores, são excelentes, dirigidos com mestreia.
O curioso da história é que John Ford teve dificuldades em produzir este filme. Entregou-o primeiramente a David O. Selznick, que o recusou, e foi um independente da United Artists, Walter Wanger, a financiá-lo. Este queria que fosse Gary Cooper a protagonizar o filme, mas Ford conseguiu impor o quase desconhecido John Wayne. Acabaria por ser um sucesso de bilheteira e de crítica que se prolonga até hoje. Muitos dos maiores cineastas de todos os tempos e latitudes, como Ingmar Bergman, Akira Kurosawa, Sergei Eisenstein, Alfred Hitchcock, Elia Kazan, David Lean, Martin Scorsese ou François Truffaut afirmaram dever-lhe muito. Akira Kurosawa disse mesmo que “Stagecoach” era um de seus filmes favoritos e o tinha influenciado muito quando realizou a sua obra-prima “Sete Samurais”. O filme resulta numa esplendorosa obra-prima que Orson Welles confessou ter visto para cima de quarenta vezes, antes de se estrear com “Citizen Kane”. Não poderia ter melhor escola de cinema.
Curiosidades: em 1966, produziu-se um remake, “Cavalgada de Paixões”, com Ann-Margret e Bing Crosby, com realização de Gordon Douglas. Nada a ver. Em 1986 surgiu uma versão para a televisão, com Willie Nelson, Kris Kristofferson e Johnny Cash. Dirigida por Ted Post. Pior ainda.


CAVALGADA HERÓICA
Título original: Stagecoach
Realização: John Ford (EUA, 1939); Argumento: Ernest Haycox, Dudley Nichols, Ben Hecht (este não creditado); Produção: John Ford; Música: Gerard Carbonara; Fotografia (p/b): Bert Glennon; Montagem: Otho Lovering, Dorothy Spencer, Walter Reynolds; Direcção artística: Alexander Toluboff; Guarda-roupa: Walter Plunkett; Maquilhagem: Norbert A. Myles; Direcção de Produção: Daniel Keefe, Jack Kirston; Assistentes de realização: Wingate Smith, Yakima Canutt, Lowell J. Farrell; Departamento de arte: Wiard Ihnen; Som: Frank Maher, Robert Parrish; Efeitos especiais: Ray Binger; Companhia de produção: Walter Wanger Productions; Intérpretes: Claire Trevor (Dallas), John Wayne (Ringo Kid), Andy Devine (Buck), John Carradine (Hatfield), Thomas Mitchell (Doc Josiah Boone), Louise Platt (Mrs. Lucy Mallory), George  (Marshal Curley Wilcox), Donald Meek (Samuel Peacock), Berton  (Ellsworth Henry Gatewood), Tim Holt (Lt. Blanchard), Tom Tyler (Luke Plummer), Dorothy Appleby, Frank Baker, Chief John Big Tree, Ted Billings, Wiggie Blowne, Danny Borzage, Ed Brady, Fritzi Brunette, Yakima Canutt, Nora Cecil, Steve Clemente, Bill Cody, Jack Curtis, Marga Ann Deighton, Patricia Doyle, Tex Driscoll, Johnny Eckert, Franklyn Farnum, Francis Ford, Brenda Fowler, Helen Gibson, Don Hawks, Robert Homans, William Hopper, Si Jenks, Cornelius Keefe, Florence Lake, Al Lee, Duke R. Lee, Theodore Lorch, Chris-Pin Martin, Jim Mason, Louis Mason, Merrill McCormick, J.P. McGowan, Walter McGrail, Paul McVey, Jack Mohr, Kent Odel, Artie Ortego, Vester Pegg, Jack Pennick, Chris Phillips, Joe Rickson, Buddy Roosevelt, Elvira Ríos, Mickey Simpson, Margaret Smith, Chuck Stubbs, Harry Tenbrook, Leonard Trainor, Mary Kathleen Walker, Bryant Washburn, Whitehorse, Hank Worden, etc. Duração: 96 minutos; Distribuição em Portugal: inexistente; Distribuição em BluRay Espanha; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 30 de Setembro de 1939. (legendas em espanhol).

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