Chinatown


FILMES QUE EU AMO / sessão 15


1.  RECORDANDO O ESTÚDIO APOLO 70
“Chinatown” foi um dos filmes estreados no Estúdio Apolo 70, precisamente a 20 de Dezembro de 1974. Esta sala de cinema teve durante duas dezenas de anos um papel preponderante, no nosso país, no lançamento de obras essenciais da cinematografia mundial, bem assim como de alguns títulos portugueses. Antes do 25 de Abril de 1974 julgo que manteve uma programação de grande qualidade revelando tanto obras de autores consagrados, como de estreantes que prometiam muito, ou filmes de cinematografias pouco conhecidas entre nós. Não era a primeira sala estúdio em Portugal, pois antes já se tinham inaugurado o Estúdio do Império e o Satélite, ligado ao Monumental, mas era a primeira que se anunciava dirigida por um crítico de cinema, então a escrever diariamente no “Diário de Lisboa”. O Estúdio Apolo 70 pertencia ao grupo Lusomundo, que algum tempo antes começara a ter como administrador e director o tenente coronel Luís Silva que impulsionara o grupo com uma dinâmica nova e que, rapidamente, transformou duas importantes distribuidoras, a Lusomundo e a Sonoro Filmes, no maior grupo de exploração cinematográfica do país. Foi Luís Silva que me convidou a dirigir a programação do Apolo 70, alguns meses antes da sua inauguração. Aceitei com prazer o repto, com uma condição que foi seguida escrupulosamente por ambas as partes: eu continuaria a ser crítico de cinema com inteira liberdade de opinião e sem estar sujeito a qualquer pressão, a sala procuraria ser inflexível na escolha de bons filmes, olhando obviamente a alguns aspectos de ordem financeira: nem a Lusomundo queria que o empreendimento fosse um desastre económico, nem eu, na medida que pretendia um trabalho duradouro na difusão e sensibilização para o cinema de qualidade artística e cultural relevantes.
Assim foi. A sala abriu as suas portas ao público de Lisboa, integrada num complexo que constituía nessa altura o maior “drugstore da Europa. Assim era publicitado nos meios de comunicação da época. O projecto era do arquitecto Augusto Silva e a decoração de Paulo Guilherme A sala contava com 300 lugares e estava equipada com aparelhagem Philips de projecção para 35 mm (em ecrã normal e cinemascópio).
0 Estúdio Apolo 70 inaugurou com a estreia de “O Vale do Fugitivo” (Tell Them Willie Boy is Here), de Abraham Polonski, western moderno, na linha da renovação do género à época, que era interpretado por Robert Redford, Susan Clark, Katherine Ross e Robert Blake. Ao escolher esse filme para estreia, pretendi desde logo definir uma linha de actuação: cinema de enorme qualidade cinematográfica, estética e cultural, abordando temas importantes, quer viesse de grandes estúdios norte-americanos, quer fosse oriundo de outras proveniências. Sem preconceitos sequer quanto a géneros. Mas o Apolo 70 pretendia muito mais. De certa forma, renovar o panorama cinematográfico lisboeta e nacional. Inventar novos horários: fomos os introdutores do horário da meia noite, com uma sensacional “Meia Noite Fantástica”, que principiou ainda no antigo Vox, com “Frankenstein Criou a Mulher”, de Terence Fisher, bem como o horário da hora do almoço. Criou-se um programa como não havia antes nas salas portugueses. Distribuído gratuitamente, acompanhava cada novo filme com criteriosos textos informativos e críticos. Organizavam-se ciclos, retrospetivas e pequenos festivas de cinema, que antecipavam algumas estreias.


Na altura, escrevi umas “palavras de apresentação da nova sala”, que apareceram no programa então distribuído aos espectadores, onde se podia ler:
"Ao abrir as portas todo o cinema que se preza orgulha-se de se apresentar ao público referindo normalmente a excelência da sua projecção, a comodidade dos seus lugares, o bom gosto do seu ambiente, o interesse espectacular da sua programação, etc. Apolo 70 poderia começar também por isso (e cremos que o faria com inteira justiça) mas as responsabilidades que irá contrair são, sobretudo, de um outro tipo. Com o que a sua declaração de princípio pretenderá atingir um alcance muito mais vasto.
Entendemos que uma sala de cinema não passa de um local onde o espectador se dirige essencialmente para ver cinema. Como a uma biblioteca vai um leitor, como a um museu se desloca um visitante. Sentado ou deitado nas coxias de qualquer cinemateca abarrotando de olhos ávidos; refastelado nas poltronas luxuosas do Club 13 ou do Coronet; comprimido nas cadeiras de ferro e madeira da sala do seu bairro; com calor ou frio nas cine-esplanadas; sentado no banco que de casa levou para o adro da igreja de uma aldeia que o ambulante visita de animatógrafo às costas, por todo o lado uma mesma motivação, ainda que com intenções básicas diversas: ver cinema, deixar-se possuir pelo fascínio das imagens em movimento, descer ao fundo da noite e percorrer os caminhos da fantasia e do sonho, penetrar no mundo por vezes alienante da ilusão celofanizada, ou retirar da parábola e da História o ensinamento e a lição que nelas se encobrem. O cinema, com 75 anos de idade, oferece ao homem possibilidades inesgotáveis, Resta ao cineasta não trocar a criação pelo fabrico em série, não alienar a sua liberdade e talento, imolados em nome da facilidade e do êxito imediato. Ao público compete igualmente escolher e sobretudo saber escolher. Para o que deverá estar informado (possuindo as chaves que lhe permitirão penetrar neste universo fascinante e perigoso) e devidamente formado (ou seja: sabendo utilizar essas chaves que lhe são facultadas e utilizá-las de uma forma viva, pessoal, enriquecedora).
Pois Apolo 7o aposta no cinema de qualidade e é esse cinema que propõe aos seus futuros espectadores. Um crítico de cinema, enquanto crítico de cinema, estará à frente da programação desta sala, procurando estabelecer uma plataforma de confiança recíproca entre quem escolhe uma programação e o público a que esta se dirige.
Podemos certamente afirmar que nesta sala só serão exibidas películas a que reconheçamos valor para isso e uma inequívoca importância. Obras de qualidade invulgar e sobejamente significativas (tanto a um nível histórico, onde os lapsos de cultura cinematográfica portuguesa são flagrantes, como num plano de modernidade narrativa ou de significado humano).
Basicamente este será o rumo de Apolo 7o, uma sala aberta a todos quantos amam no cinema o seu lado mágico e inquietante, onde a lucidez e a imaginação do criador serão sempre argumentos de peso primordial. Apolo 70 não pretende ser a capela de um grupo de intelectuais de rígida ortodoxia estética e cinematográfica. O cinema só será uma das formas de expressão mais importantes do nosso tempo desde que profundamente ligado ao público.  É esse espectáculo de fraternal comunicação que defendemos desde que ao serviço do homem e do seu futuro. É esse cinema que aqui irá passar, sob as mais diversas formas, do necessário experimentalismo à escrita de sereno classicismo, do western à comédia, do realismo ao maravilhoso, do documentário à ficção.  
As nossas intenções foram claramente definidas no esquema de programação que seguidamente anunciamos. Onde o cinema português ocupará o lugar que julgamos já merecer,
Para além das obras em estreias Apolo 70 dinamizará o seu horário apresentando “Filmes em Retrospectiva” (repondo películas de significado diverso, mas de visão aconselhável), “Meia Noite Fantástica” (reservada ao terror, ao fantástico, à ficção cientifica, ao maravilhoso) e ainda “Manhãs Infantis” (apresentando os filmes possíveis para maiores de 6 anos, sessões essas que se destinam a fomentar o gosto pelo bom cinema do público de amanhã)."
Anunciava-se ainda algumas características curiosas: A sala funcionará com os seguintes horários e preços: sessões aos dias de semana: 14,3o - 16,45 - 21,45 h; aos sábados e domingos: 14,30 – 16,45 - 19 - 21,15 h. Sessões especiais: Filmes em retrospectiva: 19 h (de 2ª a 6ª feira) Meia Noite Fantástica: 23,30 h (sábados) Manhãs Infantil: 11 h (Domingos).
Os preços variavam: Tardes de semana: 15$00; Noites de semana; 25$00; Tardes e Noites de Sábados, domingos, feriados e estreia: 30$00; Filmes em Retrospectiva: 15$00 (estudantes: 10$00); Meia Noite Fantástica: 20$00 e Manhã Infantil: 15$OO (crianças 7$5O).
No primeiro ano de funcionamento o Apolo 70 estreou, além de “O Vale do Fugitivo”, “Os Amores de Uma Loura”, de Milos Forman, “América, América, para onde Vais?”, de Haskel Wexler, “Ivan, o Terrível”, de Sergei Eisenstein, “Os Contos de Beatrix Potter”, de Reginald Mills, “Calcutá”, de Louis Malle, “O General della Rovere”, de Roberto Rossellini, “O Passado e o Presente”, de Manoel de Oliveira, “Taking Off”, de Milos Forman, “Pedro Só”, de Alfredo Tropa, “Um Dia na Vida de Ivan Denissevitch”, de Casper Wrede, “Jerry, 8 ¾”, de Jerry Lewis, “Uma História Imortal”, de Orson Welles e “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock. Nada mau.
Para quem pretender informações complementares sobre esta sala, pode consultar o blogue https://estudioapolo70.blogspot.pt/



2.  CHINATOWN
Se há “filme negro” a cores e realizado fora da época de ouro do género, esse é, quase de certeza, “Chinatown”, de Roman Polanski. Na verdade, esta obra consegue assumir todas as convenções do género, com uma característica que a diferencia de muitas outras: não se trata de uma imitação, nem de uma paródia, nem de uma “homenagem”, mas tão simplesmente de uma recuperação com tudo o que de original e de novo pode conter. Na verdade, Polanski (e o experiente argumentista Robert Towne) recriam o ambiente, as situações e as personagens do “filme negro” dos anos 40 e 50 do século passado, não copiando o já feito, mas improvisando sobre o material clássico.
J.J. Gittes (Jack Nicholson), o protagonista desta aventura, é um ex-polícia que abandonou a carreira para se dedicar à profissão de detective particular, especializado sobretudo em casos de adultério. Cínico, desacreditado dos homens e traumatizado por anos a patrulhar o bairro de Chinatown, em Los Angeles, procura um emprego menos violento, seguindo senhoras e senhores que buscam divertimento fora de casa. Possui um escritório aceitável, dois colaboradores leais, anda sempre vestido com uma elegância que contrasta um pouco com a do seu paradigma, o Humphrey Bogart das criações dos detectives de Dashiell Hammett ou Raymond Chandler. J.J. Gittes gosta do bom, senão do melhor, abre uma cigarreira de ouro para oferecer um cigarro aos seus clientes, e não deixa de ostentar um belo lenço no bolso do casaco. Parece um dandy, mas não se exime a ultrapassar os limites vedados das propriedades privadas, nem está livre de sofrer ciladas que deixam o seu nariz em péssimo estado. Mas a sua especialidade são mesmo os adultérios e é para confirmar mais um caso de infidelidade que aceita o encargo de perseguir e confirmar a traição de um tal Mulwray, homem forte das águas e electricidade de Los Angeles. Mas a “mulher” de Mulwray não é afinal a verdadeira mulher de Mulwray que J.J. Gittes descobre ser Evelyn Mulwray (Faye Dunaway), uma belíssima filha de um outro magnate das águas e electricidade de Los Angeles, Noah Cross (John Huston), que é sócio de Mulwray, ou, pelo menos, já foi.
A história é rocambolesca, como manda um bom “filme negro”, onde a verdade parece ir flutuando à medida que a acção decorre, para terminar obviamente num desenlace inesperado, mas consentâneo com a denúncia da corrupção que campeia ente a política, as forças da ordem e os meios económicos que tudo controlam e viciam em nome do lucro fácil.
Outra característica muito curiosa de “Chinatown” é o tom de narrativa adaptado por Roman Polanski. Uma escrita serena, perante o avolumar das suspeitas, quase contemplativa, com uma personagem omnipresente (todo o filme repousa sobre as costas de um muito contido Jack Nicholson, numa composição admirável de inteligência e rigor), que o espectador vai acompanhando na sua investigação a par e passo. Nós e J.J. Gittes vamos cobrindo cada averiguação, cada surpresa, cada volte face, até à desilusão final.
Magnificamente filmado num colorido dominado por tons ocres ou nocturnos, com assinatura de Stanley Cortez e, finalmente, de John A. Alonzo, “Chinatown” apresenta ainda uma magnífica direcção artística, na criação dos ambientes relativos ao final dos anos 30, inícios dos anos 40, da responsabilidade de W. Stewart Campbell e Richard Sylbert, bem como uma cuidada procura de elementos de decoração (Ruby R. Levitt) e de guarda-roupa (Anthea Sylbert).
Jack Nicholson, Faye Dunaway e o velho John Huston, um realizador que dirigiu alguns filmes negros notáveis, como “Relíquia Macabra” ou “Quando a Cidade Dorme”, criam personagens inesquecíveis.
O filme foi nomeado para vários Oscars, como Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor (Jack Nicholson), Melhor Actriz (Faye Dunaway), Melhor Fotografia (John A. Alonzo), Melhor Direcção Artistica e decoração (W. Stewart Campbell, Ruby R. Levitt), Melhor Guarda-roupa (Anthea Sylbert); Melhor Som (Charles Grenzbach, Larry Jost), Melhor Montagem (Sam O'Steen) e Melhor Música Original (Jerry Goldsmith). Ganhou o Oscar de Melhor Argumento Original (Robert Towne). Nos Globos de Ouro, para lá de varias nomeações, triunfaria no Melhor Filme (drama) e Melhor Realizador.


CHINATOWN
Título original: Chinatown
Realização: Roman Polanski (EUA, 1974); Argumento: Robert Towne, Roman Polanski; Produção: C.O. Erickson, Robert Evan, Jerry Goldsmith; Música: Jerry Goldsmith; Fotografia (cor): John A. Alonzo, Stanley Cortez; Montagem: Sam O'Steen; Casting: Jane Feinberg, Mike Fenton; Design de produção: Richard Sylbert; Direcção artística: W. Stewart Campbell; Decoração: Ruby R. Levitt; Guarda-roupa: Anthea Sylbert; Maquilhagem: Hank Edds, Susan Germaine, Lee Harman, Vivienne Walker; Direcção de Produção: C.O. Erickson; Assistentes de realização: Michael Ader, Hawk Koch, Lee Rafner; Departamento de arte: Bill MacSems, Gabe Resh, Robert Resh; Som: Clint Althouse, Bob Cornett, Charles Grenzbach, Larry Jost; Companhias de produção: Paramount Pictures, Penthouse,  Long Road Productions, Robert Evans Company; Intérpretes: Jack Nicholson (J.J. Gittes), Faye Dunaway (Evelyn Mulwray), John Huston (Noah Cross), Perry Lopez (Escobar), John Hillerman (Yelburton), Darrell Zwerling (Hollis Mulwray), Diane Ladd (Ida Sessions), Roy Jenson (Mulvihill), Roman Polanski (homem com faca), Richard Bakalyan (Loach), Joe Mantell, Bruce Glover, Nandu Hinds, James O'Rear, James Hong, Beulah Quo, Jerry Fujikawa, Belinda Palmer, Roy Roberts, Noble Willingham, Elliott Montgomery, Rance Howard, George Justin, C.O. Erickson, Fritzi Burr, Charles Knapp, Claudio Martínez, Federico Roberto, Allan Warnick, John Holland, Jesse Vint, Jim Burk, Denny Arnold, Burt Young, Elizabeth Harding, John Rogers, etc. Duração: 130 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 18 de Dezembro de 1974.

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