Bambi


FILMES QUE EU AMO / sessão 8


1.  1942
“Bambi” é um dos filmes da minha vida. Nasci a 18 de Agosto de 1942, em Lisboa. “Bambi” estreou-se em Londres a 8 de Agosto de 1942, e alguns dias depois em Nova Iorque. Em Portugal, estreou a 17 de Janeiro de 1944, no cinema Tivoli, numa distribuição da Radio Filmes. Quando eu era muito miúdo, não havia classificações etárias e toda a gente podia ver todos os filmes. Os meus pais gostavam de cinema, iam com frequência e eu habituei-me a ver filmes ao colo. Mas de todos os possíveis filmes que vi nesses anos iniciais, o que me marcou foi “Bambi”. Esta animação ficou como marca e referência para todo o sempre. Comove-me até às lágrimas (o que, diga-se, em cinema, e em arte em geral, não é difícil), vi-o quando tinha três ou quatro anos e chorei que nem uma madalena, contavam os meus pais e, daí em diante, continuo a chorar sempre que assisto às desditas do jovem gamo. Não resisti até hoje a mostrá-lo ao filho, ao neto, e a todos os que me passam pela frente. Diga-se ainda que, anos depois, 1946, estreou nos EUA, e a 24 de Fevereiro de 1948 em Portugal, “O Despertar” (The Yearling), de Clarence Brown, com Gregory Peck e Jane Wyman, outra história, esta em imagem real, que me impressionou bastante. Novamente com uma gazela por protagonista.
Mas o ano de 1942, em matéria de cinema, ainda me reservou muitas outras boas notícias. Soube-o muito mais tarde, é claro. Nesse ano estreou-se “Casablanca”, de Michael Curtiz, e “O Quarto Mandamento”, de Orson Welles, “Os Trovadores Malditos”, de Marcel Carné, “Obsessão”, de Luchino Visconti, e até “Aniki Bobó”, de Manoel de Oliveira, tudo obras de minha particular estima. E o próprio “O Mundo a seus Pés”, o meu favorito entre os favoritos, e que data de 1941, estreou em Portugal em Outubro desse ano e pode muito bem estar na origem do meu nascimento: os meus pais gostavam muito de cinema.
Já agora outros títulos indispensáveis desta colheita de 1942: “Ser ou Não Ser”, de Ernst Lubitsch, “Sabotagem”, de Alfred Hitchcock, “A Pantera”, de Jacques Tourneur, “A Família Miniver”, de William Wyler, “A Estranha Passageira”, de Irving Rapper, “Canção Triunfal”, de Michael Curtiz, “O Ídolo do Público”, de Sam Wood, “Aluga-se Esta Arma”, de Frank Tuttle, “O Assunto do Dia”, de George Stevens, “Sangue, Suor e Lágrimas”, de Noël Coward, David Lean, “Nascida para o Mal”, de John Huston, “O Ídolo do Público”, de Raoul Walsh, “L'assassin habite... au 21”, de Henri-Georges Clouzot, “Ele É Um Pai”, de Yasujirô Ozu, ou mesmo “Abbott e Costello Detectives”, de Erle C. Kenton, ou “Tarzan em Nova Iorque”, de Richard Thorpe. Em Portugal ainda se estreara “O Pátio das Cantigas”, assinado por Francisco Ribeiro, mas supervisionado pelo irmão António Lopes Ribeiro.


1942 não era só cinema. Infelizmente, na Europa, e noutros locais do mundo, vivia-se um dos mais terríveis flagelos que a Humanidade conheceu. A II Guerra Mundial estava no seu auge. Em 7 de Dezembro de 1941, acontecera o ataque das forças do Eixo a Pearl Harbour e, pouco depois, os EUA entravam na guerra. As chamas de “Bambi” não se poderiam ler apenas como uma crítica a caçadores que abatiam inofensivas gazelas e pegavam fogo às florestas.
Em Portugal não havia guerra, mas os seus sinais chegavam até nós. Lembro-me de ver, devia eu ter dois ou três anos, os vidros das janelas da minha casa atravessados por linhas de papel que eram ali coladas prevendo ataques aéreos (de Aliados? de forças do Eixo?). E lembro-me (ou estarei a sonhar?) de ouvir sirenes na noite, antecipando ataques que nunca existiram. Seriam exercícios? Recordo, em todos os casos, o reconfortante colo do meu pai. Já agora, mais uma recordação desses tempos. Creio que se passou em 1945, teria 3 anos, e houve um sismo em Lisboa (pesquizei na internet e deve ser esse o ano). Morávamos numa casa na Avenida Afonso III, uma artéria relativamente nova por essa altura e que descia do Alto de São João quase até ao rio. Uma noite, não me lembro de mais nada, senão de estar ao colo do pai, a casa a tremer, os móveis a balouçar, a minha mãe agarrada ao meu pai e este a segurar com uma mão um enorme guarda-fatos para impedir que ele desabasse sobre nós. Conseguiu. Sobrevivemos todos e até o guarda-fatos. O meu pai passou a ser um super-homem para mim. Assim termina esta evocação de 1942 (e  seguintes).

2.  BAMBI


“Bambi” é um dos filmes mais importantes da animação mundial, por vários motivos. No seu tempo, constituiu um feito assinalável de um ponto de vista narrativo e estético. Não falando das façanhas técnicas. Estávamos ainda no tempo da animação por imagem a imagem (e muito longe ainda da imagem digital). Nesse aspecto é um prodígio de animação, não só pelo alto grau de profissionalismo, mas igualmente pela forma clara e discreta como o desenho é trabalhado, o que nos leva já para um terreno mais avançado da narrativa. Sendo esta uma história emotiva e que poderia facilmente resvalar para o melodrama xaroposo, o que nós vemos é a recusa absoluta dos efeitos fáceis. Nenhum momento de grande violência nos é mostrado, a mãe de Bambi é atingida, mas rapidamente se passa à sua ausência, os caçadores nunca são vistos (apenas se ouvem os tiros das espingardas), e algumas sugestões mais fortes que já existem no romance austríaco são trabalhadas por forma a serem menos violentas no ecrã. Este tipo de elipse, em lugar de tirar densidade e dramatismo à acção, acaba por tornar mais intensos os momentos, retirando-lhe, todavia, qualquer laivo de aproveitamento excessivo.
Interessante será referir a origem literária. Na verdade, o argumento de “Bambi” (escrito a várias mãos: Perce Pearce, Larry Morey, Vernon Stallings, Mel Shaw, Carl Fallberg, Chuck Couch e Ralph Wright) parte de uma obra literária de um autor austríaco, Felix Salten, e referia-se a um jovem veado europeu a viver num bosque da Europa Central. Foi em 1933 que os direitos deste romance foram adquiridos pelo realizador e produtor norte-americano Sidney Franklin, um homem especializado em melodramas e filmes infantis, mas em imagem real. Nunca conseguiu, porém, erguer o projecto e, em 1937, Walt Disney comprou-lhe os direitos para adaptação ao cinema. Por essa altura Disney era já um mago da animação, mas não muito bem-sucedido na bilheteira. “Bambi” é a sua quinta longa-metragem (depois, por exemplo, de “Branca de Neve e os Sete Anões”, “Pinóquio”, “Fantasia” ou “Dumbo”) e voltou a não ser, na altura da sua estreia, um grande sucesso (só “Branca de Neve” o foi). Algum tempo mais tarde, passaria a ser um dos grandes êxitos deste estúdio e transformar-se-ia numa referência para várias gerações de espectadores que não dispensam a sua visão.
O insucesso destas obras de Disney terá tido alguma coisa a ver com o facto da Europa se encontrar em guerra e os EUA não contarem quase com este mercado. Como já vimos “Bambi” iria estrear mundialmente em Londres, em 1942, numa cidade devastada pela guerra. Esta estreia, antecipando a de Nova Iorque, teve, certamente, algum impacto e um efeito galvanizador para os Aliados, mas a receita da bilheteira não compensou o empate de capital na sua produção.
Uma das receitas de Disney foi uma curiosa conjugação de dois factores: por um lado um estudo sistemático de comportamento e hábitos dos animais que aparecem nos seus filmes. “Bambi” teve uma equipa de zoólogos a trabalhar no empreendimento e a dar sugestões. Por outro lado, existe uma antropomorfização das figuras dos animais que não só passam a falar e exprimir sentimentos como ainda adquirem comportamentos humanos, o que os aproxima emocionalmente dos espectadores. A morte da mãe de Bambi não é só a morte da mãe de uma gazela, mas cada espectador sente-a como a morte da sua mãe.
O filme transforma-se num poema da iniciação de uma gazela que vai entrar na vida adulta, conhecendo na pele as alegrias e as dores desse crescimento. Tema eterno que comove crianças e adultos e que se tornou num dos sucessos mais perenes dessa máquina de sonhos que foram, ao logo de décadas, os estúdios Walt Disney.

BAMBI
Título original: Bambi
Realização: James Algar, Samuel Armstrong, David Hand, Graham Heid, Bill Roberts, Paul Satterfield, Norman Wright, numa produção Walt Disney (EUA, 1942); Argumento: Perce Pearce, Larry Morey, Vernon Stallings, Mel Shaw, Carl Fallberg, Chuck Couch, Ralph Wright, segundo romance de Felix Salten; Produção: Walt Disney; Música: Frank Churchill, Edward H. Plumb; Operador de câmara; Max Morgan; Direcção artística: Tom Codrick, Robert Cormack, Lloyd Harting, David Hilberman, John Hubley, Dick Kelsey, McLaren Stewart, Al Zinnen; Assistentes de realização: Jack Atwood, Mike Holoboff, Bob Ogle; Departamento de arte: Wah Chang, Jules Engel, Lew Keller, Harold Miles, Sylvia Moberly-Holland, Maurice Noble, Zack Schwartz, Glenn Scott, Gustaf Tenggren, Tyrus Wong; Som: Andreas K. Meyer, Terry Porter, Keith Rogers, James MacDonald,  C.O. Slyfield; Efeitos visuais: Patrick L. Almanza, Casey James Basichis, Jeff Schiffman, Rachel Clement, Rejyna Douglass-Whitman, Miles E. Pike, Jason Richardson; Animação: Ollie Johnston, Milt Kahl, Eric Larson, Frank Thomas, Travis Johnson, Milt Kahl, Jack Kinney, Curt Perkins, Frank, etc. Companhia de produção: Walt Disney Productions; Intérpretes (vozes): Hardie Albright, Stan Alexander, Bobette Audrey, Peter Behn, Thelma Boardman, Janet Chapman, Jeanne Christy, Dolyn Bramston Cook, Marion Darlington, Tim Davis, Donnie Dunagan, Sam Edwards, Ann Gillis, Mary Lansing, Margaret Lee, Clarence Nash, Babs Nelson, Fred Shields, Bobby Stewart, John Sutherland, Paula Winslowe, Will Wright, etc. Duração: 70 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 6 anos; Data de estreia em Portugal: 17 de Janeiro de 1944.

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