Aniki Bóbó


FILMES QUE EU AMO / sessão 6


1.          O MEU PORTO
“Aniki Bobó” é possivelmente o filme português de que mais gosto. Não quererá isto dizer que não surjam outros que me impressionaram vivamente, algumas comédias dos anos 30 e 40, obras do cinema novo e, mais recentemente, títulos oriundos de gerações mais jovens. Inclusive vários outros assinados pelo próprio Manoel de Oliveira (assim mesmo, com o). Mas “Aniki Bobó” (e “Douro, Faina Fluvial”, da mesma época) permanece como o meu preferido.
Por diversas razões, de que mais à frente falarei, e também por se passar no Porto, cidade de que muito gosto. Durante 15 anos dei aulas de cinema e audiovisual no Instituto Politécnico do Porto, no Curso de Tecnologias da Comunicação Audiovisual (o TCAV). Por isso, viajava para o Porto no domingo à tarde, pernoitava na cidade, de manhã ia para o edifício da Escola Superior de Educação, onde funcionava o TCAV, e ali permanecia em aulas seguidas, até cerca das 20 horas. Muitas vezes regressava a Lisboa nessa mesma noite, noutras ficava até terça de manhã, para poder usufruir de algumas regalias que a cidade oferecia. Teatro, exposições (claro Serralves, mas não só), cinema, ou apenas aproveitar a noite para amenas cavaqueiras com amigos (e amigas). Nesse meu período, passei a organizar sessões cinematográficas no IPP, abertas e gratuitas a toda a população escolar, que tiveram um bastante bom acolhimento. Era o Fórum Académico de Cinema do Porto, uma organização do ISEP, com projecções no grande auditório deste instituto. Esta iniciativa surgiu depois de ter organizado, igualmente no IPP, os II e III Festivais Escolar de Vídeo (o primeiro realizara-se em Lisboa, com sessões no Fórum Picoas). 
Mas antes ainda deste período em que viajei semanalmente até ao Porto por imposição profissional, a verdade é que era frequentador habitual da cidade, por razões variadas. Uma delas terá sido o Fantasporto, que acompanhei por inteiro durante 15 anos, quer como simples espectador, quer como crítico, quer como jurado, inclusive como colaborador do próprio festival, onde se editaram alguns originais meus (Cronenberg, Tourneur, Cinema Fantástico, o argumento de “Drácula em Lisboa”). A amizade com Mário Dorminski e Beatriz Pacheco Pereira ficou para sempre.

Mas ainda não existia Fantasporto e já passara no Porto uma semana inesquecível. Em Dezembro de 1967, numa iniciativa do Cine Clube do Porto, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, realizou-se uma “Semana de Estudos Sobre o Novo Cinema Português”, que reuniu cineastas, críticos, animadores culturais, etc. Viram-se longas e curtas metragens até aí realizadas por jovens e aí se lançaram as bases do Centro Português de Cinema, a primeira cooperativa de cinema português, fundada em 1969 a partir de um texto programático, “Ofício do Cinema em Portugal”. Foram dias excitantes, que vivi lado a lado com Victor Silva Tavares, em casa de quem encontrei abrigo durante essa semana. Uma bela vivenda na praça da Boavista.
Mas, muito antes disso, já demandava o Porto, como local de fuga à normalidade. Lembro boas viagens com familiares pela antiga estrada nacional, com paragem obrigatória em Pombal, para uma refeição junto de uma bomba de gasolina, onde se comia um delicioso arroz de tomate, com várias iguarias. 
Também se cometeram loucuras. Um sábado à noite, saíamos depois das duas da manhã, do Café Vavá, eu e o Manuel Guimarães, quando nos veio à ideia que no dia seguinte jogava, no Porto, o Sporting com o Boavista: O Guimarães era do Boavista, eu do Sporting, e assim partimos para a cidade invicta, juntamente com as nossas respectivas, de… táxi. 
No dia do jogo, ficámos nas filas de baixo de uma das bancadas e, atrás de nós, choviam os impropérios aqui impublicáveis. Então levanta-se um senhor atrás de nós, vira-se para trás e, com um ar extremamente circunspecto, grita: “Sejais educados, com car… (impublicável), estão aqui senhoras!”. O Sporting desta vez ganhou.


Ligam-me ainda ao Porto muito outros laços cinematográficos. Quando dirigia a programação do Estúdio Apolo 70, em Lisboa, abriu no Porto uma sala estúdio, igualmente explorada pela Lusomundo, o Foco. A convite do Ten. Cor. Luís Silva, comecei também a programar esta sala na Av. da Boavista. Os resultados foram muitos bons, há muita gente que se lembra certamente da qualidade dos filmes ali exibidos. Depois, já não estava eu à frente da sala, a frequência decaiu e acabou por ser devorada pela crise das salas de cinema. Hoje está fechada.
Mais tarde ainda, programei cinematograficamente, durante meses apenas, o que lamento, o Coliseu e o Passos Manuel, numa altura em que se falava em fechar estas salas e a administração da época me ter convidado a exercer o cargo. Era uma tarefa difícil, aguentar uma sala com a lotação do Coliseu com filmes de grande público e de qualidade. Mais fácil era aguentar uma programação consentânea com o historial do Passos Manuel.  
Mais recentemente, sob proposta minha, efectuaram-se sessões de cinema no Auditório da Biblioteca Almeida Garrett. Com base em ciclos temáticos, a Invicta Filmes (assim se chamou a iniciativa em homenagem à produtora portuense do tempo de cinema mudo) passou obras de diversos autores, actores ou género. Fiquei absolutamente surpreendido quando fui apresentar o ciclo dedicado a David W. Griffith e estavam cerca de 150 pessoas na sala. Gratificante. 
Mas o Porto é, além de tudo o mais, uma cidade magnífica e as suas gentes são de uma simpatia e de uma sincera afabilidade. Adoro Lisboa, cidade branca, mediterrânica e luminosa, mas também me deslumbra o Porto, cinzento, granítico, majestoso e austero nos seus edifícios, com belos recantos para amantes apaixonados curtirem os seus amores de perdição.
E regressemos ao Porto da infância de Manoel de Oliveira. “O senhor foi tão bom, deu-me uma boneca!”


2.          ANIKI BOBÓ
Nos primeiros anos da sua carreira de cineasta, Manoel de Oliveira surpreendeu pela modernidade do seu cinema. Em 1931, estreia-se no cinema, com esse arrebatador “Douro, Faina Fluvial”, que é lançado no V Congresso Internacional da Crítica, que António Ferro promove em Lisboa, em Setembro de 1931, e onde é recebido com pateada e assobios, com algumas raras excepções (o dramaturgo Pirandello e francês Émile Vuillermoz, que o defendem). Estamos na época das vanguardas estéticas, Oliveira terá visto “Berlim, Sinfonia de uma Cidade”, do alemão Walter Rutman, e obras do soviético Dziga Vertov, e da experiência retirou uma visão pessoal e impressionante do seu Porto natal e das suas gentes. Na altura berrou-se contra a má imagem dada de Portugal e do Porto, hoje o título é uma referência clássica do cinema mundial.
O mesmo aconteceu onze anos depois. Entre 1931 e 1942, Oliveira roda várias curtas-metragens documentais com algum interesse, mas em 1942 oferece-nos “Aniki Bobó”, uma obra de novo vanguardista, mas de uma outra forma. Pode quase dizer-se que este é um filme clássico na sua narrativa que se torna moderno por essa altura porque antecipa de certa forma o que iria acontecer em Itália, durante o período neorrealista que se inicia em meados dos anos 40. Filmes como “Ossessione”, de Visconti (1943), “I bambini ci guardano”, de De Sica (1943) ou “Romma Città Aperta”, de Rosssellini (1945), todos ele posteriores ao filme de Oliveira, são as marcas claras do aparecimento do neorrealismo no cinema italiano. Há vários factores a aproximar a estética do neorrealismo italiano do filme de Oliveira: a rodagem em exteriores naturais, uma técnica simples (também por falta de meios), raros actores profissionais e o recurso sobretudo a amadores, temas simples ligados ao povo. Um cinema que reproduza a realidade sem a alindar, com verdade.
Depois, há ainda uma curiosidade que emerge de “Aniki Bobó” e se observa bastante nos filmes italianos: o aparecimento da criança como centro de uma narrativa onde ela desempenha papel essencial. Veja-se “I Bambini Ci Guardano” ou “Ladri di Biciclette”, por exemplo, mas haverá mais títulos a justificar esta conclusão. Em ambos os casos as atmosferas são poéticas, mas nos exemplos italianos as crianças sofriam com uma realidade dramática e opressiva, enquanto em “Aniki Bobó” o olhar de Oliveira não é tão acusatório da realidade que apresenta, miserável é certo, mas nimbada por essa ternura infantil. Não deixa de ser sintomático que António Ferro aponte este filme como um exemplo a seguir no campo da cinematografia portuguesa apoiada pelo Estado Novo. Curiosamente, durante muitos anos o cineasta foi esquecido por esse mesmo Estado Novo.


“Meninos Milionários”, de João Rodrigues de Freitas, é o ponto de partida desta obra, que teve adaptação do próprio Manoel de Oliveira, com a colaboração, nos diálogos, de Manuel Matos e de António Lopes Ribeiro. Tudo gira em redor de um grupo de crianças pobres, que vive perto do porto da Cidade Invicta, das suas travessuras, dos seus amores e rivalidades, do seu universo minimalista em relação ao mundo adulto em que eles se irão integrar. Estamos nos anos 40 (1942, mais precisamente), a II Guerra Mundial varre a Europa, Portugal vive sob o governo de Oliveira Salazar. Os protagonistas são miúdos, putos na canção do Paulo de Carvalho, filhos de gente pobre que passam a vida na rua, com alguns intervalos na escola. Passeiam pelas ruas, mergulham no Douro, brincam a um jogo que dá o nome ao filme, “Aniki Bobó”, ouvem fadistas ou cantores de rua (curiosidade, o cantor é Manuel de Azevedo, um conceituado crítico de cinema nos anos 40 a 60), e dois deles disputam entre si o coração da miúda do grupo, a Teresinha, que vive apaixonada por uma boneca que viu na montra da “Loja das Tentações”. Brincam ao som de uma ladainha: “Aniki-bébé, / Aniki-bóbó, / Passarinho, tótó, / Berimbau, cavaquinho, / Salomão, sacristão, / Tu és polícia, / Tu és ladrão!”.
O Carlitos e o Eduardo são os rivais que chegam mesmo a vias de facto. Carlitos é um lírico, sem grande apetência para as lutas, Eduardo é o galã musculado, de fisga em riste. Carlinhos vagueia pelos telhados, indo do seu quarto ao quarto de Teresinha, e um dia rouba a boneca para a oferecer à amada. Esta fica reconhecida, mas o gesto de Carlinhos não lhe sai da consciência (“Segue sempre por bom caminho…” é o lema escrito na sua sacola de escola). A história evolui nesta linha dramática, com os miúdos a viverem a liberdade irrequieta da sua idade, e o professor intransigente e o polícia descominal a tentarem impor a sua autoridade. Digamos que figuras autoritárias brandas, num país de “brandos costumes”.  
A poesia que envolve toda a obra é o factor surpreendente desta primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, que nos descobre uma realidade difícil e agreste, mas ao mesmo tempo olha com optimismo o futuro deste grupo de adolescentes, magnificamente interpretados por não profissionais que tornam absolutamente plausível cada gesto e cada palavra. António Lopes Ribeiro, na escrita dos diálogos, deve ter imprimido um certo cunho de humor que se aproxima muito da comédia portuguesa dessa década, e a presença de Nascimento Fernandes (dono da loja) e Vital dos Santos (professor) asseguram uma representação invulgarmente conseguida. Nascimento Fernandes é mesmo um prodígio de graça e de talento.
Uma pequena obra-prima da cinematografia portuguesa.

ANIKI BÓBÓ
Título original: Aniki Bóbó
Realização: Manoel de Oliveira (Portugal, 1942); Argumento: Manoel de Oliveira, inspirado num poema de João Rodrigues de Freitas, com colaboração de Nascimento Fernandes, António Lopes Ribeiro, Manuel Matos e Alberto Serpa; Produção: António Lopes Ribeiro, Manoel de Oliveira, Fernando Garcia; Música: Jaime Silva Filho; Fotografia (p/b): António Mendes; Montagem: Vieira de Sousa, Manoel de Oliveira; Decoração: José Porto; Maquilhagem: Antonio Vilar; Assistentes de realização: Fernando Garcia, Manuel Guimarães; Departamento de arte: Silvino Vieira; Som:  Sousa Santos, Mário Malveira, Francisco Pereira de Mesquita; Companhia de produção: Produções António Lopes Ribeiro, Exclusivos Triunfo; Intérpretes: Nascimento Fernandes (dono da loja), Vital dos Santos (professor), António Palma, Armando Pedro, Horácio Silva (Carlitos), António Santos (Eduardo), António Soares (Pistarim), Feliciano David (Pompeu)Manuel Sousa ('Filófofo', Antonio Melo Pereira ('Batatinhas'), Rafael Mota (Rafael), Américo Botelho ('Estrelas'), Fernanda Matos (Terezinha), Manuel de Azevedo, António Freitas, Pinto Rodrigues, etc. Duração: 7 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Nos Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 18 de Dezembro de 1942.

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