As Asas do Desejo
FILMES QUE EU AMO / sessão 7
1.NOVO
CINEMA ALEMÃO
O chamado “Novo
Cinema Alemão” surgiu na RFA em meados dos anos 60 e prolongou a sua
influência até inícios da década de 80. Na sua génese esteve a “Nouvelle Vague”
francesa, o regresso a uma certa tradição germânica da sua cinematografia
expressionista, e uma necessidade imediata de abordar alguns dos temas sociais
mais prementes da sociedade alemã (tanto ocidental, como de leste). O “Novo
Cinema Alemão” apresentou-se mesmo como um movimento tendo algumas
manifestações públicas muito precisas, como o “Manifesto de Oberhausen”,
aparecido durante as VII Jornadas da Curta-metragem, em Oberhausen, em 1962,
onde vinte e seis personalidades ligadas ao cinema alemão subscreviam uma
declaração de princípios que constituiria um marco decisivo no futuro da
cinematografia germânica. Dizia o manifesto:
“O fracasso do cinema convencional alemão
desloca finalmente a base económica para uma das posições intelectuais
geralmente desconsideradas. Deste modo, o Novo Cinema dispõe de possibilidades
de conseguir vitalizar-se.
“Como noutros países, também na Alemanha a
curta-metragem se converteu em escola e campo experimental para a
longa-metragem.
“Manifestamos a nossa pretensão de criar um
novo cinema alemão. Este novo cinema exige novas liberdades. Liberdade em
relação às influências do comércio. Liberdade em relação aos convencionalismos
usuais do ramo. Liberdade em relação à tutela de certos interesses.
“Temos, relativamente à produção do novo
cinema alemão, ideias concretas de tipo intelectual, formal e económico.
Estamos dispostos a suportar riscos económicos em comum. O velho cinema está
morto. Creiamos no novo”.
Entre os vinte e seis signatários, alguns
nomes que se tornariam depois primeiras figuras desse novo cinema: Alexander
Kluge, Franz-Josef Spieker, Herbert Vesely, Ferdinand Khiti, Edgar Reitz, Peter
Shamoni, Heinz Tichawsky, como realizadores, e Bob Howver, Hans-Jurgen Pohland
e Hora Senft, como produtores.
A primeira aparição pública do “Novo Cinema
Alemão” surge em 1966, no Festival de Cannes, projectando três obras decisivas:
“Der Junge Törless”, de Volker Schlondorff, “Es”, de Ulrich Shamoni e “Nicht
Versohnt”, de Jean Marie Straub. Em Veneza, por seu turno, surgiria “Abschield
von Gestem” (Anita G,), de Alexander Kluge. Mas o movimento levaria algum tempo
mais a cimentar a sua existência.
Em Setembro de 1967, surge uma nova
“Declaração”, aquando do festival de Manheim, assinada, entre outros, por Josef
Von Sternberg (como presidente do Júri), Alexander Kluge, Edgar Reitz, Hans
Rolf Strobel, Heinz Tichawsky, etc. Nessa “Declaração de Manheim”, podia
ler-se:
“O futuro de uma economia só pode ser julgado
em função da promoção dos jovens. Nenhuma economia deve ser um clube fechado
tendo as pessoas já o seu lugar sentado. O projecto da lei de auxílio supõe, de
uma forma unilateral, grandes casas de distribuição e de produção. Não faz
nenhum caso da cultura pelo filme, nem da nova geração com os seus pequenos
orçamentos”.
As dificuldades perante a legislação que
privilegiava o comércio em detrimento da arte continuaram, mas os cineastas da
geração que surge no cinema em meados de 60, muitos deles devidamente reconhecidos
internacionalmente como autores de uma importância incontroversa e mesmo com
algum êxito comercial - romperam definitivamente com o marasmo da produção
alemã ocidental que se colocou, por essa altura, entre as mais interessantes e
surpreendentes de todo o mundo.
Companheiros de grupo ou aderentes e
simpatizantes multiplicaram-se, criando um movimento que revelou duas ou três
dezenas de autores de primeiríssimo plano: Volker Schlondorff, Ulrich Shamoni,
Jean Marie Straub e Danièle Huillet, Alexander Kluge, Edgar Reitz, Werner
Herzog, Wim Wenders, Hans-Jürgen Syberberg, Werner Schroeter, Rainer Werner
Fassbinder, Helma Sanders-Brahms, Margarethe von Trotta, Alf Brustellin, entre
alguns mais.
Portugal nesse tempo vivia sob um governo
ditatorial, onde não seria muito fácil ver estas obras projetadas em circuito
comercial. Mas alguns privilegiados, entre os quais eu, podemos assistir à
projecção de quase todas elas através de circuitos paralelos. Um deles foi a
programação esmerada do Goethe Institut, de Lisboa, dirigido na época pelo Dr.
Curt Meyer-Clason, que foi mostrando todos estes títulos, em ciclos e
retrospectivas que atraíam muito público.
Não só o Goethe Institut procurava remar
contra o isolacionismo nacional. Outros institutos, francês, italiano,
espanhol, inglês, cubano, procuravam mostrar um pouco da sua cultura. O Goethe
Institut oferecia ainda a oportunidade de ceder algumas dessas obras para
cineclubes ou festivais. Foi assim, igualmente, que pude assistir a um muito
importante ciclo sobre Cinema Novo Alemão, durante a primeira edição do
Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, dirigido por uma equipa
comandada pelo Padre José Vieira Marques. Diga-se de passagem, que este
festival teve uma importância decisiva na revelação de novas cinematografias e
novos autores, estendendo a sua existência até 2002, mas perdendo impacto nos
últimos anos. Acompanhei-o durante 15 anos e dei conta disso num livro que
dediquei às primeiras 15 edições.
2. AS
ASAS DO DESEJO
Wim Wenders nasceu em Düsseldorf, numa
família católica tradicional. O pai, Heinrich Wenders, era cirurgião. Wim
Wenders estudou num colégio em Oberhausen, no Vale do Ruhr. Depois cursou medicina
(1963–64) e filosofia (1964–65) na Universidade de Freiburg e Düsseldorf. Mas
viria a desistir da universidade mudando-se para Paris em Outubro de 1966, com
a ambição de se tornar pintor. Reprovou ainda no exame de admissão à escola
nacional de cinema de França, o IDHEC
(agora, La Fémis), e, como alternativa, vira-se para a gravura, exercitando-se
no estúdio de Johnny Friedlander, um artista norte-americano, em Montparnasse.
Durante este tempo, Wim Wenders fascinou-se pela sétima arte e devorava filmes
na sala de cinema local.
Regressado à Alemanha em 1967 começou a
trabalhar nos escritórios de Düsseldorf da United Artists. Por esse tempo
ingressou na "Hochschule für Fernsehen und Film München"
(Universidade de Televisão e Filme de Munique). Entre 1967 e 1970, enquanto
estava na "HFF", Wim Wenders estreia-se como crítico cinematográfico
para a “FilmKritik”, para o diário de Munique “Süddeutsche Zeitung”, para a revista
“Twen” e para “Der Spiegel”. O seu percurso como realizador inicia-se com
várias curtas metragens, antes de concluir os estudos na Hochschule com uma
longa-metragem, em 16mm, preto e branco, chamada “Summer in the City”. De 1972
é “Die Angst des Tormanns beim Elfmeter” (A Angústia do Guarda-redes na Hora do
Penalti), seguindo-se uma filmografia onde abundam as obras decisivas, como “Alice
in den Städten” (Alice nas Cidades), 1974; “Falsche Bewegung” (Movimento em
Falso), 1975; Im Lauf der Zeit (Ao Correr do Tempo), 1976; “Der amerikanische
Freund” (O Amigo Americano), 1977; Lightning over Water (ou Nick's Film), 1979;
Hammett, 1982; Stand der Dinge (O Estado de Coisas), 1982; Paris, Texas, 1984;
chegando em 1987 a “Der Himmel über Berlin” (As Asas do Desejo) Depois disso, a
sua carreira progrediu, sempre interessante, com títulos como “Bis ans Ende der
Welt” (Until the End of the World), 1991; “In weiter Ferne, so nah!”, (Tão
Longe, Tão Perto) 1993; Lisbon Story, 1994; Buena Vista Social Club (1999); The
Million Dollar Hotel, 2000, entre vários outros. Mais recentemente estreou dois
documentários particularmente aliciantes, “Pina”, 2011 e “O Sal da Terra",
2014. Já em 2017, foi agraciado em Lisboa pelo conjunto da sua obra com o
Prémio Europeu Helena Vaz da Silva pela divulgação do Património Cultural/2017
e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, condecorou-o ainda com o
grau de comendador da Ordem do Mérito, considerando-o um “amigo de Portugal e
europeísta convicto”.
“As Asas do Desejo” é, pois, um título
intermédio da sua filmografia, e, conjuntamente com “Paris Texas”, uma das suas
obras de referência obrigatória. Data de 1987, rodado, portanto, somente alguns
anos antes da queda do muro de Berlim.
A um período de um certo nihilismo
ideológico, representado, por exemplo, por “Alice nas Cidades”, sucede-se uma
forma nova de encarar a realidade. Wim Wenders assume um olhar metafísico, ou
pelo menos denotando uma procura do espiritual, de que “As Asas do Desejo” é não
só um claro sintoma, como um excelente e belíssimo exemplo.
Dois anjos, Daniel e Cassiel, descem à
cidade. A cidade é Berlim, terra dividida pelo muro. Os anjos descem do céu,
misturam-se com os humanos, observam-nos nas ruas e nas bibliotecas, no circo
ou durante a rodagem de um filme... E descobrem, um pouco por todo o lado, uma
certa tristeza, uma visível indiferença, uma profunda incomunicabilidade. Entre
os humanos, um antigo anjo é hoje actor de cinema e chama-se Peter Falk. E os
anjos descobrem mais, descobrem por entre os homens que se ignoram, o amor
possível de um anjo por uma trapezista de nome Marion. O amor de um anjo que
desceu do céu à terra, por uma mulher que diariamente, partindo da terra tenta
agarrar o céu, equilibrando-se no frágil fio da sua arte. É um momento mágico
de cinema, este que Wim Wenders consegue neste filme admirável, único,
surpreendente.
Enquanto o cinema recria o pesadelo nazi,
através do filme dentro do filme, Wim Wenders retrata-nos a cidade dividida, a
Alemanha dividida, o mundo dividido. Primeiramente a preto e branco, porque os
anjos não conhecem as cores; depois, a cores, porque os anjos quiseram
experimentar a natureza do humano e se confrontam com os perigos bem complexos
da realidade.
Mais do que um filme, “As Asas do Desejo” é
um poema sobre o destino do homem. Os poemas só muito dificilmente se explicam.
Sentem-se, ou não se sentem. Gostaria muito de partilhar convosco esta
experiência que julgo singular na história do cinema, sem muitas palavras que o
filme não necessita, e dar simplesmente as boas vindas aos anjos que vêm lá
"do céu sobre Berlim". Assim, sem mais.
AS ASAS
DO DESEJO
Título
original: Der Himmel über Berlin
Realização: Wim Wenders (RFA,
França, 1987); Argumento: Wim
Wenders, Peter Handkee com a colaboração de Richard Reitinger; Produção:
Anatole Dauman, Pascale Dauman, Joachim von Mengershausen, Wim Wenders, Ingrid
Windisch; Música: Jürgen Knieper; Fotografia (cor e p/b): Henri Aleka;
Montagem: Peter Przygodda; Design de produção: Heidi Lüdi; Decoração: Esther
Walz; Guarda-roupa: Monika Jacob; Maquilhagem: Regina Huyer, Victor
Leitenbauer; Direcção de Produção: Herbert Kerz; Assistentes de realização:
Claire Denis, Carola Hochgräf, Knut Winkler; Departamento de arte: Peter
Alteneder, Thierry Noir; Som: Axel Arft, Hartmut Eichgrün, Detlev Fichtner,
Lothar Mankewitz, Jean-Paul Mugel, Uwe Thalmann; Companhias de produção: Road
Movies Filmproduktion, Argos Films, Westdeutscher Rundfunk (WDR), Wim Wenders
Stiftung; Intérpretes: Bruno Ganz
(Damiel), Solveig Dommartin (Marion), Otto Sander (Cassiel), Curt Bois (Homer),
Peter Falk (Peter Falk), Hans Martin Stier, Elmar Wilms, Sigurd Rachman,
Beatrice Manowski, Lajos Kovács, Bruno Rosaz, Laurent Petitgand, Chick Ortega,
Otto Kuhnle, Christoph Merg, Peter Werner, Susanne Vierkötter, Paul Busch,
Karin Busch, Irene Moessinger, Franky, Teresa Harder, Daniela Nasimcova,
Bernard Eisenschitz, Didier Flamand, Rolf Henke, Scott Kirby, Franck Glemin,
Nick Cave and The Bad Seeds, etc. Duração:
128 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária:
M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 1 de Janeiro de 1988. Dedicado a Yasujirô Ozu, Andrei Tarkovsky e François
Truffaut.
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