Aurora




FILMES QUE EU AMO / sessão 8
AS CIDADES E AS SERRAS
Sempre tive uma relação dúbia com o belíssimo romance de Eça de Queiroz, “A Cidade e as Serras”. Por um lado, o poder descritivo de Eça é genial. Por outro, o tema deixa-me um sabor não muito amável na boca. Eu sou nitidamente um citadino. Gosto de grandes metrópoles, gosto do frenesim e do barulho, das luzes e do movimento. Mas também gosto da serenidade da aldeia, das ondas a deslizarem na areia em tardes de Outono (ou mesmo Dezembro), gosto dos arraiais e das feiras populares, das procissões e do café da província. Não gosto mesmo nada do preconceito e das ideias feitas, detesto a crítica fácil à civilização e o elogio palerma da natureza, assim como admiro quem se delicia com um belo passeio pelo campo, pela aldeia silenciosa, ou quem fustiga os perigos e os vícios da grande cidade. Acho, pelo contrário, que a cidade e as serras devem coexistir, ambas com prós e contras, que aumentam à medida que ambas crescem e se agigantam nas suas características. Para mim, Lisboa ou Porto são cidade ideais, nelas coexistem a cidade e as serras, é só procurar, e tenho imenso prazer em perder-me em Paris, Londres ou Nova Iorque, durante quinze dias, da mesma forma que sinto enorme felicidade em descansar numa pequenina cidade da Serra da Estrela ou num lugarejo do Alentejo.
Eça de Queiroz parece fazer o elogio destemperado de Santa Cruz e a arrasadora visão dantesca da Paris industrializada e sem alma, mas a verdade é que escreve, por essa altura, uma carta à mulher que termina assim: “São horas do Correio. Ainda por qui fico (Sta. Cruz), se Deus quiser, dois ou três dias. Depois Lisboa, e querendo Deus, logo Paris a seguir”. Um bom projecto de vida.


A cidade tem tantos vícios como a província. Ambas são habitadas pelos homens e a sua condição. Por vezes a província, meios pequenos e acanhados, é mais agressiva do que a cidade. O contrário também é verdade, a cidade pode ser desumana. A cidade e as serras são o que delas fizermos. Do que escolhermos para ser a nossa vida.
Vivi sete anos em Portalegre, entre 1950 e 58, o meio era terrível se bem analisado, fechado e provinciano, perdido no meio do Alto Alentejo, mas fui feliz. José Régio tinha razão: “E era então que sucedia / Que em Portalegre, cidade / Do Alto Alentejo, cercada / De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros / Aos pés lá da casa velha / Cheia dos maus e bons cheiros / Das casas que têm história, / Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória / de antigas gentes e traças, / Cheia de sol nas vidraças / E de escuro nos recantos, / Cheia de medo e sossego, / De silêncios e de espantos, /- A minha acácia crescia. / Vento suão! obrigado... / Pela doce companhia / / que em teu hálito empestado / Sem eu sonhar, me chegava! / E a cada raminho novo / Que a tenra acácia deitava, / Será loucura!..., mas era / uma alegria / Na longa e negra apatia / Daquela miséria extrema / Em que eu vivia, / E vivera, / Como se fizera um poema, / Ou se um filho me nascera”.
Pois em Portalegre tive uma boa meninice, que me marcou para a vida. Depois voltei a Lisboa, tinha quinze anos, e sempre me dei bem com a capital. Vou regularmente às grandes metrópoles mundiais arejar as ideias, e às aldeiazinhas de Portugal descansar essas mesmas ideias. Não me venham dizer que as cidades são o demónio e as aldeias o idílico paraíso. Há para todos os gostos, muitas vezes as circunstâncias são adversas, outras vezes poderemos ser nós a criar o problema.
Curiosamente, o mesmo se passa com as mulheres. É maniqueísta a ideia de dividir as mulheres em puras mães de famílias e sinistras “femmes fatales”. Obviamente que há exemplos para tudo, e bem se sabe que há mulheres que são namoradas, mães, amantes, e tudo o mais que se possa imaginar. Mas a divisão simplista entre o Amor da pura e o Sexo da pecadora é objectivamente uma classificação machista derivada de uma sociedade onde tudo se permitia ao homem e tudo se criticava à mulher. Bem me lembro dos tempos em que os senhores bem instalados na sociedade tinham em casa uma sacrificada mãe de família e tinham por conta uma divertida amante que lhe preenchia os apetites luxuriantes que eles próprios[LA1]  recusavam às fidelíssimas esposas. Mais tarde, e já com alguma sabedoria, alguns conseguiram harmonizar as coisas, preferindo “uma senhora em sociedade e uma prostituta na cama”.
Nestas notas memorialistas, prometo não entrar em confidências íntimas, por muita experiência que possa ter. Mas experiência é algo que nunca se deve recusar. Conheci mulheres que amei de formas muito diversas, desde a terrífica pantera à beatífica jovem que só esperava o atear de um fósforo para libertar o vulcão que se escondia no seu interior. Sempre convivi bem com essa harmonia entre amor e sexo. Aliás, julgo que nenhum deles pode existir sem o outro. Ignorar isto só trará insatisfação e traumas.

1.  AURORA


Há obras de arte que amamos profundamente e com as premissas das quais não estamos total, ou parcialmente, de acordo. “O Nascimento de uma Nação”, de Griffith, é talvez o caso mais flagrante, mas “Aurora”, de Murnau, um dos mais belos filmes da História do Cinema, pode ser um outro exemplo. Muito menos significativo no desacordo, é certo.
Vejamos, ainda que rapidamente, quem foi este realizador que aconselhava os actores a “não representarem, pensarem”. F.W. Murnau nasceu a 28 de Dezembro de 1888, em Bielefeld, na Alemanha, e viria a falecer, muito novo, a 11 de Março de 1931, em Santa Barbara, Califórnia, EUA, vítima de um acidente de automóvel. O seu nome de baptismo era Friedrich Wilhelm Plumpe, mas anos mais tarde, por desacordos familiares, resolveu dispensar o nome Plumpe e atribuir-se o de Murnau. Estudou arte e literatura na Universidade de Heidelberg, foi muito influenciado pelo pensamento de Schopenhauer, Nietzsche, Shakespeare ou Ibsen. Durante a I Grande Guerra foi piloto e sofreu diversos ferimentos, depois apaixonou-se pelo teatro, foi assistente de Max Reinhardt, um dos mais importantes encenadores alemães, começou a dirigir filmes em 1919. A grande maioria dos seus títulos germânicos perdeu-se, mas dele se conhecem algumas obras-primas, como “Nosferatu, o Vampiro” (1922), “O Último dos Homens” (1924), ou “Fausto” (1926). Neste último ano, parte para Hollywood, a convite de William Fox, tendo-lhe sido oferecido um contrato inédito, com liberdade total e orçamento ilimitado, para três anos, pela Fox Studio. Aí realizou três filmes, “Sunrise” (1927), “4 Devils” (1928) e “City Girl” (1930). “Aurora” não terá dado o lucro pretendido, apesar de ser nomeado para quatro Oscars e ter ganho três (Melhor Filme, Melhor Actriz e Melhor Fotografia). Os dois restantes títulos ainda correram pior na bilheteira e Murnau saiu da Fox. Um pouco desiludido, afastou-se de Hollywood, refugiou-se em Bora-Bora, com um célebre documentarista, Robert J. Flaherty, com quem dirigiu “Tabu” (1931). Diferenças de visão dividiram os dois cineastas e Murnau terminou o projecto a solo. Quando se preparava para assistir à estreia de “Tabu”, morreu num acidente de automóvel, na Pacific Coast Highway, perto de Rincon Beach, em Santa Barbara. O carro era conduzido por um jovem criado filipino, Garcia Stevenson, que faleceu igualmente. Onze pessoas assistiram ao funeral deste que é hoje considerado um dos maiores cineastas de sempre, entres elas Robert J. Flaherty, Emil Jannings, Greta Garbo e Fritz Lang. Foi sepultado em Berlim e, muitos anos depois, em Julho de 2015, o seu túmulo foi vandalizado, roubado o crânio, e supostamente foi palco de alguma cerimónia ocultista.
Friedrich Wilhelm Murnau era assumidamente homossexual e este aspecto deve ter condicionado grande parte da sua obra. Um sentimento de culpa paira em quase todos os seus filmes conhecidos, desde “Nosferatu” a “Aurora”, bem como uma forte presença do pecado, do vício, como forças do Mal. A presença da mulher é sempre ambígua, de um lado a pureza, do outro o vício tentador e pecaminoso.


“Aurora” tem ainda uma característica acrescida dada a data da sua produção: 1927. O cinema estava a meio caminho entre o mudo e o sonoro. O filme é um reflexo desse tempo de incerteza e de experiências. Curiosamente, sendo quase integralmente mudo, a profunda expressividade de Murnau torna-o inusitadamente sonoro. Há dezenas de exemplos de momentos na obra onde o apelo do som é manifesto, gritos, vozes, ruídos, instrumentos musicais, tudo aponta para essa presença do som, sugerido somente através da imagem e da montagem. Assim fica demonstrada a genialidade de Murnau em transmitir essa sensação, sem recurso ao som real.
Passemos ao que julgo ser a essência de “Aurora”, a luta entre a noite e o dia, entre a pureza e o pecado, entre a cidade e a aldeia, entre o vício e a virtude. Entre as vítimas e os opressores, quase sempre seres vampirescos. Muitas das suas personagens são vampiros, no estrito sentido do termo, como Nosferatu, ou no plano simbólico, como essa mulher da cidade que se desloca a uma aldeia nas margens de uma lagoa, para desviar para o pecado “o homem”, que para tanto atraiçoa “a mulher”. Esta é uma história de um homem e de uma mulher, não é daqui nem dali, diz respeito a todos, em qualquer lugar. É assim que principia “Aurora” e é esta ideia moralizante que preside a toda a obra. É uma história a tender para a abstração, onde se discutem conceitos, não um caso particular. Essa a razão principal da minha divergência com esta ideia central. Associar a noite e a cidade ao pecado e ao vício, associar o campo ao dia e à pureza é um preconceito absolutamente indesculpável. Associar ainda para mais a sexualidade ao pecado e o amor à pureza, mesmo em 1927, é algo muito retrógrado. Até para um homossexual que se sentisse rejeitado pela sociedade e assumisse a sua sexualidade com culpa.
A história é muito simples. Num lugarejo à beira de um lago vive um casal jovem, com um filho bebé. São felizes até que aparece uma mulher da cidade, sob a forma de vampe, que se intromete entre marido e mulher e tenta desviar o homem do bom caminho, através de um erotismo desbragado. Este quase é convencido a simular um acidente de barco, matando a mulher, para poder passar a viver com essa desconhecida que o enfeitiça. Mas, no último momento, vacila, e marido e mulher acabam por chegar à grande metrópole, onde fazem as pazes e gozam os prazeres da noite e da cidade, deixando-se inebriar pelas luzes e os sons, os salões de beleza e os fotógrafos, os restaurantes e os grandes circos, as ruas movimentadas e perigosas. Reconciliados, regressam a casa, onde os espera a furtiva mulher da noite (empoleirada num ramo de árvore para se perceber bem que tem uma raiz de ave de rapina, vampiresca). Mas uma tempestade que brota da cidade (não por acaso) atinge a barcaça e o naufrágio acontece. Percebe-se que tudo terminará de forma pacífica, o Bem e a Moral vencem, a mulher desafiadora é expulsa da aldeia, e a aurora nasce para o refeito casal.
Apesar desta história de um conformismo absoluto, e de um preconceito a toda a prova, este é um dos mais belos filmes da história do cinema, um poema de imagens inigualáveis, uma narrativa com uma originalidade estética invulgar (ainda hoje em dia), uma fabulosa viagem pela noite e pelo dia, com movimentos de câmara absolutamente prodigiosos, com uma fotografia deslumbrante num preto e branco espantoso e uma iluminação mágica (assinada por Charles Rosher e Karl Struss), com uma direcção artística de um gosto subtil e delicado (devida ao alemão Rochus Gliese, inexcedível). Actores sublimes que parece terem nascido para encarnar as personagens a que aqui dão vida.
Muitos são os adjectivos? Poucos são, porém, em relação aos atributos desta obra sem par, seguramente um dos momentos mais inspirados da História da Sétima Arte e um exemplo brilhante de como o cinema mudo era uma arte de uma invenção e criatividade sem concorrência. Há poemas que se usufruem. Há obras de arte que se admiram simplesmente. Há momentos na vida de um espectador de cinema que não se explicam: vivem-se.

AURORA
Título original: Sunrise: A Song of Two Humans
Realização: F.W. Murnau (EUA, 1927); Argumento: Carl Mayer, segundo história de Hermann Sudermann, Katherine Hilliker, que escreve os intertítulos de colaboração com H.H. Caldwell; Produção: William Fox; Música: R.H. Bassett e Carli Elinor (estreia em Los Angeles), Erno Rapee (estreia em New York), Hugo Riesenfeld (1928), Willy Schmidt-Gentner; Fotografia (p/b): Charles Rosher, Karl Struss; Montagem: Harold D. Schuster; Direcção artística: Rochus Gliese; Maquilhagem: Charles Dudley; Assistentes de realização: Herman Bing; Departamento de arte: Don B. Greenwood, Alfred Metscher, Edgar G. Ulmer, Gordon Wiles; Efeitos especiais: Frank D. Williams; Companhias de produção: Fox Film Corporation; Intérpretes: George O'Brien (o homem), Janet Gaynor (a mulher), Margaret Livingston (a mulher da cidadey), Bodil Rosing (a criada), J. Farrell MacDonald (o fotógrafo), Ralph Sipperly (o barbeiro), Jane Winton (a manicura), Arthur Housman, Eddie Boland, Vondell Darr, Herman Bing, Sidney Bracey, Gino Corrado, Sally Eilers, Gibson Gowland, Fletcher Henderson, Thomas Jefferson, Bob Kortman, F.W. Murnau (um dançarino), Barry Norton, Robert Parrish (rapaz), Sally Phipps, Harry Semels, Phillips Smalley, Leo White, Clarence Wilson, etc. Duração: 94 ou 106 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 10 de Maio de 1965 (director's cut).






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