Os 400 Golpes
FILMES
QUE EU AMO / sessão 1
1. COMO VEJO “OS QUATROCENTOS GOLPES”
“Les 400 Coups” é um dos primeiros e um dos
mais importantes filmes da “Nouvelle Vague”. Estreou em Paris em 1959 e em
Lisboa, dois anos depois, em 1961. Tinha eu 19 anos, já gostava há muito de
cinema, já escrevia em jornais e revistas, e vibrava com as novidades.
Novidades quase sempre requentadas no caso português, pois os filmes apareciam
nas nossas salas alguns anos depois da sua estreia oficial. Hoje acontece
praticamente em simultâneo, sobretudo no caso de películas norte-americanas.
“Os Quatrocentos Golpes” foi um
acontecimento. Pelo menos para algum público português. Não me lembro se terá
ganho uma longa carreira, mas por esses anos alguns filmes de autor mobilizavam
bastante público, quer em salas estúdio, com poucos lugares, quer em salas de
vasta audiência, como Império, o Monumental, o Tivoli, o São Jorge, o Éden, o
Condes, entre outras.
Lembro-me do filme me marcar muito. Não
recordo se escrevi alguma coisa sobre esta longa-metragem de estreia de
François Truffaut, mas foi uma obra que deixou marcas profundas. Tão profundas
que, vendo hoje a minha “Manhã Submersa” e “Les 400 Coups”, não posso deixar de
encontrar pontos de contacto, não intencionais (entre os dois distam duas
décadas), mas psicológicos. Se o romance de Vergílio Ferreira me terá marcado
aos 15 anos para sempre, obras como este filme de Truffaut, “O Jovem Toerless”,
de Volker Schlöndorff, “Zero em Comportamento”, de Jean Vigo terão seguramente
ajudado a moldar uma maneira de sentir e de pensar. Em relação a métodos de
educação, em relação ao usufruto da liberdade individual e aos constrangimentos
impostos pela sociedade.
“Les 400 Coups”, para lá da liberdade de
movimentos, da desenvoltura da narrativa, da novidade do olhar, da franqueza da
aproximação dos problemas da juventude e da hipocrisia reinante entre muitos
dos mais velhos, oferecia ainda a revelação de um jovem actor, Jean-Pierre
Léaud que iniciava aqui, como alter ego de Truffaut, a existência de uma
personagem que iria ser acompanhada, ao longo dos anos, em sucessivas obras que
testemunharam vários períodos importantes da sua vida: “Antoine et Colette”
(1962), curta-metragem integrada no colectivo “L'amour à vingt ans”, “Beijos
Roubados” (1968), “Domicílio Conjugal” (1970) e, finalmente, “Amor em Fuga”
(1979).
No Festival de Valladolid, companheiros do Júri internacional
Jean-Pierre Léaud é um actor fabuloso logo
desde a sua estreia (creio mesmo que este será o seu melhor trabalho, apesar de
todos os outros serem por vezes brilhantes). Tive o prazer de com ele conviver
durante uma semana num Festival de Cinema, em Valladolid, em que ambos eramos
membros do Júri Internacional, presidido pelo turco Yılmaz Güney. Irrequieto,
divertido, sarcástico uma vez por outra, sedutor sempre (que o diga a Acácia
Thiele, minha actriz num filme que passou extra-competição), Léaud nunca deixou
de ser até hoje a projecção desse Doinel criado em 1959. Mais tarde, veio
filmar a Portugal e convidei-o para um jantar na belíssima serra da Arrábida,
que ele adorou.
Truffaut ficou, a partir de então, a ser um
dos meus realizadores preferidos. Gosto de todos os seus filmes, muitos poderia
escolher para ser o seu filme que eu amo, mas o primeiro marcou pela novidade.
Mais tarde, creio que em 1970 ou 71, quando eu dirigia o Estúdio Apolo 70, fui
a Paris com o proprietário da Lusomundo, Coronel Luís Silva, para selecionar
filmes para a sala. Assistimos a várias projecções em salas privadas. Uma
tarde, esperávamos que uma projecção terminasse, para entrarmos a seguir,
quando a porta se abre e sai Truffaut. O espanto e a admiração impediram
qualquer reacção. Fica a recordação desse momento único em que percebemos que
alguém que para nós é um mito, afinal tem existência física.
1. OS QUATROCENTOS GOLPES (1951)
François Truffaut, juntamente com Jean-Luc
Godard, Claude Chabrol, Agnès Varda, Jacques Rivette, Eric Rohmer, e outros,
como Alain Resnais ou Chris Marker, o próprio Roger Vadim, um pré-nouvelle
vague, muitos deles integrando a nouvelle vague, movimento que, nos finais dos
anos 50 do século passado, renovou não só o cinema francês, como deu o mote
para a modernização de grande parte do cinema mundial. Obras como “Le Beau
Serge”, de Claude Chabrol, “Hiroshima mon amour”, de Alain Resnais, “Les Quatre
Cents Coups”, de François Truffaut ou “A Bout de Souffle”, de Jean-Luc Godard,
abriram os mercados mundiais a uma nova geração de cineastas que propunham uma
nova forma de olhar o cinema, lutando contra um cinema académico e esclerosado,
que dominava o panorama, não só em França. Atacaram o que chamaram de “cinema
de papa”, e lançaram os alicerces de um cinema que olhava a realidade com uma
outra sinceridade e espontaneidade, procurando uma aproximação das personagens
e das situações que se furtasse ao estereotipo. Uns eram mais radicais, como
Godard, outros mais clássicos, como Truffaut, mas todos contribuíram para essa
renovação tão necessária. Da velha guarda, poucos se salvavam (Renoir, Bresson,
Tati, Vigo eram olhados como mestres), e houve algumas injustiças.
Esqueceram-se cineastas como Clouzot, Jacques Becker, Duvivier, entre outros.
Os homens da nouvelle vague foram beber
grande parte da sua influência ao neo-realismo surgido em Itália, depois da
guerra, apropriaram-se da metodologia, mas esqueceram a retórica política. Não
a social. Os seus filmes são um bom retrato da França de DeGaule, com as suas
injustiças, hipocrisia, desajustes sociais.
“Les Quatre Cents Coups” é disso um bom
exemplo. Estamos em Paris, finais dos anos 50. Filme a preto e branco, pouco
recursos, actores não profissionais, filmagens em exteriores (e interiores)
naturais, pequenas equipas pautadas por amigos que se ajudam mutuamente, um
olhar novo sobre a realidade social, sem nenhuma demagogia política. Não se apontam soluções utópicas, avança-se com
imagens da actualidade para o espectador comentar e sentir a solo.
As primeiras imagens são panorâmicas sobre
ruas e avenidas de Paris, com a curiosidade de, lá ao fundo, permanecer a torre
Eiffel, esse símbolo maior da cidade, todavia tapado pelo cinzentismo das
fachadas de casas em primeiro plano.
Estamos na Avenue Frochot, Paris 9, Paris, que
na época era um local mal frequentado, atreito a prostituição e deboche, com o
Moulin Rouge por perto (hoje é um condomínio fechado, luxuoso). Por ali mora e
vive um adolescente, Antoine Doinel, que tem uma mãe que não o ama, um pai,
divertido, mas um pouco tonto, um professor de francês de impenetrável mau
humor, um colega de escola com quem passeia pela cidade e se furta às aulas, um
colega bufo que o denuncia sempre que pode, e uma rebeldia incontrolável, uma
ânsia de liberdade e de amor que o levam a algumas tropelias que, por sua vez,
obrigam (?) os pais a entregá-lo à policia e, posteriormente, a um
reformatório.
Parece que este argumento tem muito de
autobiográfico em relação a Truffaut. O que terá ido ao ponto de escolher um
jovem para interpretar o principal papel que se assemelhava ao cineasta e que
passa a funcionar como um alter ego nesse e em futuros filmes. Daí uma evidente
sinceridade e conhecimento de causa que se pressentem ao longo de toda esta
aventura sentimental de um adolescente em fuga do seu presente, e sem grandes
perspectivas de futuro (veja-se o enigmático plano final).
Não tenho muitas dúvidas de que esta é,
seguramente, uma das obras-primas que a Nouvelle Vague nos legou e Jean-Pierre
Léaud uma das mais inolvidáveis revelações do cinema daquele tempo (e imagine-se
que foram descobertos talentos como Jean-Paul Belmondo, Emmanuelle Riva, Anna
Karina, Brigitte Bardot, Jean Seberg, Jean-Claude Brialy ou Delphine Seyrig). O
filme mantém uma frescura de olhar, uma honestidade e franqueza a abordar o
caso do seu protagonista, que ainda hoje surpreendem.
OS 400
GOLPES
Título
original: Les quatre cents coups
Realização: François Truffaut
(França, 1959); Argumento: François Truffaut, Marcel Moussy; Produção: François
Truffaut; Música: Jean Constantin; Fotografia (p/b): Henri Decaë; Montagem:
Marie-Josèphe Yoyotte; Decoração: Bernard Evein; Direcção de Produção: Georges
Charlot, Robert Lachenay, Jean Lavie; Assistentes de realização: Robert Bober,
Philippe de Broca, Francis Cognany, Alain Jeannel; Departamento de arte:
Raymond Lemoigne; Som: Jean Labussière, Jean-Claude Marchetti; Companhias de
produção: Les Films du Carrosse, Sédif Productions; Intérpretes: Jean-Pierre Léaud (Antoine
Doinel), Claire Maurier (Gilberte Doinel, a mãe de Antoine), Albert Rémy
('Petite Feuille' o professor de francês), Georges Flamant (Mr. Bigey), Patrick
Auffay (René), Daniel Couturier (Betrand Mauricet), François Nocher, Richard
Kanayan, Renaud Fontanarosa, Michel Girard, Serge Moati, Bernard Abbou,Jean-François Bergouignan,
Michel Lesignor, Luc Andrieux, Robert
Beauvais, Christian Brocard, Yvonne Claudie, Marius Laurey, Claude Mansard,
Jacques Monod, Pierre Repp, Henri Virlojeux, Marianne Girard, Simone Jolivet,
Laure Paillette,Jean-Claude Brialy (homem na rua), Jeanne Moreau (mulher com
cão), Philippe de Broca (homem no Funfair), Jacques Demy (policia), Jean
Douchet (apaixonado), François Truffaut (homem no Funfair), etc. Duração: 99
minutos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo; Classificação etária: M/
12 anos; Data de estreia em Portugal: 23 Março de 1961. Filme dedicado a André Bazin.
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