O Comboio Apitou 3 Vezes
FILMES QUE EU AMO /
sessão 16
1. DOBRAGEM
OU LEGENDAGEM?
Portugal conheceu os
malefícios da censura durante mais de quatro décadas, mas livrou-se de uma
maleita ainda mais grave, a dobragem, o que aconteceu na vizinha Espanha com
efeitos muito mais perversos do que os que sentiram os espectadores
portugueses. Vamos por partes. Como funcionava a censura em Portugal, no campo
do cinema, reduzindo o mecanismo às etapas essenciais: um filme era importado
pela distribuidora, chegava a cópia, eram traduzidos os diálogos, depois a
cópia e a lista de diálogos eram enviados à censura, e esta podia proibir na
totalidade a exibição do filme, ou cortar cenas, planos ou diálogos. Também
podiam autorizar sem cortes. Acontecia.
Se o filme era
proibido, devolvia-se a cópia, e terminava o processo. Se era cortado, a
distribuidora executava os cortes, imprimia os diálogos restantes, e o filme
seguia para estreia. Se os cortes eram apenas nos diálogos, por vezes
mantinham-se as imagens e não se introduzia o diálogo traduzido. O que dava origem a cenas
caricatas. Um dia, no Estúdio do Império, num filme de Bergman, creio que
“Persona”, um longo monologo de Liv Ullmann, em sueco, não foi traduzido na
estreia, e o público manifestou-se ruidosamente.
Com a legendagem, o espectador
dava normalmente pelos cortes e consciencializava-se de que estava a ver uma
obra mutilada. Era mau, mas nós sabíamos, e quando a tradução era deficiente,
quem conhecia a língua original apanhava a ideia geral e, mais uma vez, dava
pelo papel castrador da censura.
Em Espanha, a censura
era mais dramática utilizando a dobragem. O esquema era o mesmo, mas em vez de
introduzirem legendas, anulavam a banda sonora original e aplicavam uma nova em
língua castelhana. A nível de cortes nas imagens, o efeito era o mesmo. Mas a
nível de tradução, os mecanismos eram diabólicos, pois em vez de traduzirem o
que surgia na banda sonora do filme original, davam-se ao luxo de modificar o
sentido dos diálogos e de inventarem novas falas para as personagens, alterando
por completo, por vezes, o sentido do filme.
Nunca assisti a
“Sentimento”, de Visconti, em Espanha, mas conta-se que com este filme
aconteceu um fenómeno curioso. A protagonista, a condessa Serpiere, italiana,
tinha um caso amorosos com um oficial do exército austríaco, na altura ocupante
de Itália. Como os “bons costumes” espanhóis não permitiam o adultério, que
para eles “não existia”, os censores transformaram o oficial austríaco em irmão
da condessa e os seus encontros passaram a ter um peso erótico muito mais
grave: de amantes passaram a amantes incestuosos.
Mas a dobragem tinha um
efeito mais perturbador que ocorria, e continua a ocorrer, noutros países,
mesmo sem a censura. A representação de um actor vale, obviamente, como um
todo, pela movimentação do corpo, pela expressão facial, pela voz.... Retirando
a voz a Humphrey Bogart, por muito boa que seja a dobragem, não é a mesma voz.
Entre ouvir Gary Cooper no original ou dobrado vai uma distância imensa.
Intransponível.
Nos anos 50, era eu muito
miúdo ainda, lembro-me de ir a Madrid com os meus pais. Como Gary Cooper era, na
época, o meu actor preferido, invariavelmente um homem íntegro e honrado,
incapaz de uma vilania e sempre disposto a lutar abnegadamente pela justiça,
não perdia um filme seu, dos westerns a “Conselho de Guerra”. Por isso, os meus
pais deixaram-me ir ver um western com Gary Cooper num cinema muito perto do
hotel onde estávamos. Recordo-me que entrei sozinho ao longo de uma coxia
lateral, o filme já tinha começado, a sala era de sessões contínuas, entrava-se
e saía-se quando se queria, e fui caminhando, às escuras, guiado pelo feixe
luminoso da lanterna da arrumadora, quando vejo Gary Cooper, ao balcão de um
saloon pedindo “Me da um whisky”. Só não
saí da sala a correr não sei porquê.
Teria sido “O Comboio
Apitou Três Vezes”?
2. O
COMBOIO APITOU TRÊS VEZES
“High Noon” é um filme
magnífico, um western particularmente inspirado, mas é mais do que tudo isso. É
uma obra que se vê hoje em dia com uma determinada intenção, mas que terá de se
enquadrar no seu tempo histórico para se perceber na sua integralidade.
Comecemos pelo mais
simples, que nunca será muito simples, pois na década de 50 do século XX o
western perdera já a simplicidade maniqueísta dos conflitos a branco e preto
dos filmes de cowboys de outrora e deixara-se contaminar por uma complexidade
que fora importar à sociologia, à psicanálise, à história, aos movimentos
políticos e respectivas ideologias, etc. Pelo western, passava o mundo, e o
mundo, por essa altura, nesse convulsivo pós-guerra, era um frenético fervilhar
de ideias e propostas muito diversificadas, contraditórias, mesmo.
Mas, olhando “O Comboio
Apitou Três Vezes” com olhos limpos de quaisquer outros significados temporais
e locais, vendo-o na sua abstração, a que assistimos?
Esta é a história de
Will Kane (Gary Cooper), xerife de Hadleyville, que acaba de casar-se com Amy
(Grace Kelly), uma “quaker” adepta do pacifismo, preparando-se ambos para
deixarem a cidade, um dia antes da chegada do futuro xerife que virá substituir
Kane. Mas, mal acaba a cerimónia, corre a notícia de que Frank Miller, um
assassino que o actual xerife prendera e enviara para a prisão, fora absolvido,
e se prepara para regressar a Hadleyville, chegando no comboio do meio-dia. Na
estação, três bandoleiros já o aguardam e todos percebem qual o propósito desta
visita: Miller regressa para se vingar de Will Kane que, por isso mesmo, é
aconselhado a partir da cidade o mais rapidamente possível, dado que falta
apenas uma hora e vinte minutos para o comboio anunciar a sua paragem na
estação, apitando três vezes.
Kane e Amy seguem as
indicações dos seus concidadãos, aprestam-se a partir para longe, mas mal saem
dos limites da cidade, Kane percebe que se está a comportar como um cobarde e
resolve regressar e enfrentar a ameaça. Afinal ele ajudou a tornar Hadleyville
uma terra pacífica e ordeira, onde se pode viver sem medo, e não quer fugir
deixando tudo como dantes. Amy não aprova a decisão, pretende seguir viagem
sozinha no comboio e para tanto irá esperar pelo meio-dia no hall do hotel
local.
Will Kane, entretanto,
começa a organizar a resistência, chama os seus delegados, procura distribuir
armas, mas descobre-se afinal sozinho nos seus propósitos. Ninguém o irá
acompanhar, não terá nenhum apoio a seu lado, senão um velho estropiado a cair
de bêbado e um miúdo mais destemido. Toda a restante cidade ou se associa
estrategicamente à chegada do proscrito Miller, ou se encolhe com medo diante desse
perigo iminente. Um ou outro mais temerário é chamado à razão rapidamente. O
juiz que condenara Miller emala os trapinhos e muda de ares, cautelosamente. A
cidade fica tolhida pelo pânico de enfrentar o gang que se apresta a recuperar
o controle da situação nas suas ruas desertas.
Decidido, Kane irá enfrentar os inimigos apenas com as armas de que dispõe.
Quando a comunidade se aterroriza e acobarda, alguém tem de manter a dignidade,
mesmo que tal se assemelhe a um suicídio. Escreve o seu testamento e sai para
as ruas quando ouve os três apitos que assinalam a chegada do comboio. Este é
um apelo a haver “alguém que resista” contra a brutalidade institucionalizada.
Contra o terror imposto. Contra os fora-da-lei que conquistam o poder.
Narrado em tempo real
(o filme dura os 85 minutos, os mesmos que dura a acção), “High Noon” é exemplar
neste aspecto, conseguindo manter o equilíbrio entre o “tempo” da situação e o
suspense que a mesma provoca, jogando com acções paralelas que se vão
desenrolando em simultâneo, ora na estação, ora
no hotel, no gabinete do xerife, no “saloon”, na igreja, nas ruas, um pouco por
todo o lado. Alguns relógios vão pautando a escrita, criando a ansiedade e
mantendo-a a um bom nível. A descrição das diferentes personagens é magnífica,
servidas todas elas por actores brilhantes, mesmo nos mais pequenos papéis.
Desde os vilões aos cidadãos amedrontados, do casal protagonista à proprietária
do hotel, ex-paixão de Kane, Helen Ramírez (Katy Jurado), todos conseguem
imprimir uma personalidade sólida a cada figura. Lloyd Bridges
(Harvey Pell), Ian MacDonald (Frank Miller), Thomas Mitchell (Jonas Henderson),
Otto Kruger (juiz Percy Mettrick), Lon Chaney Jr (Martin Howe), Harry Morgan
(Sam Fuller), Morgan Farley (padre Mahin), Harry Shannon (Cooper), Lee Van
Cleef (Jack Colby), Robert J. Wilke (Pierce) ou Sheb Wooley (Ben Miller) estão
neste caso.
Para a criação deste
clima obsessivo e inquietante, que quase cruza o western com o policial, muito
contribuíram ainda a fabulosa fotografia a preto e branco de Floyd Crosby, a
partitura musical de Dimitri Tiomkin, que criou um tema inolvidável e que
acompanha como “leitmotiv” todo o desenrolar da acção, e a montagem de Elmo
Williams.
Percebe-se, pois, a
intenção primordial de Fred Zinnemann e dos seus argumentistas, Carl Foreman e
Stanley Kramer, este igualmente produtor. Uma comunidade não pode estar à mercê
de bandoleiros que controlam pela força o poder, alguém tem de intervir, e nem
sempre o pacifismo é a melhor das atitudes. Sobretudo o acomodar a este tipo de
situações não é de todo em todo aconselhável.
Mas se esta leitura é a
mais corrente entre espectadores que desconhecem o contexto em que a obra foi
criada, outra, bem mais intrincada, surge quando se integra a obra no seu tempo
histórico e no país de origem. Nos EUA, desde finais dos anos 40 até quase
final da década seguinte, a Comissão das Actividades Anti-Americanas perseguia
todos quantos assumiam ideologias que se aproximassem do comunismo ou do
socialismo. Era a vaga de fundo do anti-New Deal, o programa de recuperação
económica e social instituído pelo presidente Roosevelt. Atacando em todas as
frentes da sociedade norte-americana, o senador McCarthy e a sua equipa (de que
fazia parte Richard Nixon), que dirigiam a operação, perseguiram todos os que
pertenciam a organizações comunistas, eram meros simpatizantes ou julgados
enquanto tais. Nos sindicatos, no governo, na comunicação social, nas forças
armadas, nos meios do espectáculo, mas sobretudo no cinema, que foi escolhido
como alvo preferencial, dada a sua notoriedade e fácil publicidade nos media,
muitos foram intimados a depor perante a comissão formada para o efeito, mas de
forma muito agressiva e com repercussões drásticas. Não se tratava apenas de
saber se fulano tal era ou não comunista, mas de o obrigar a denunciar todos
quantos conhecia que professassem ideias julgadas subversivas. Esta imposição
da delação ficou tristemente conhecida como “macartismo”,
"Caça às Bruxas" ou "Terror vermelho”. O clima era de cortar à
faca nos meios cinematográficos de Hollywood, tanto mais que quem se recusou a
denunciar ou indicar nomes foi sumariamente colocado na “lista negra”, impedido
de trabalhar na indústria e ostracizado. Ou seja, o terror instalara-se em
Hollywood, muitos emigraram, outros suicidaram-se, alguns ficaram conhecidos
como “os 10 de Hollywood”, uma lista de dignos cidadãos que unicamente se
recusaram a passar a delatores. Foram eles, Alvah Bessie, argumentista, Herbert
Biberman, argumentista e realizador, Lester Cole, argumentista, Edward Dmytryk,
realizador e argumentista, Ring Lardner Jr, jornalista e argumentista, John
Howard Lawson, escritor, Albert Maltz, escritor e argumentista, Samuel Ornitz,
argumentista, Adrian Scott, argumentista e produtor, e Dalton Trumbo,
argumentista e escritor.
A lista de actores,
realizadores, argumentistas colocados na lista negra é infindável, mas aqui se
podem conhecer alguns: Gale Sondergaard, Rosaura Revueltas, Allen Adler, Larry
Adler, Orson Bean, Herschel Bernardi, Walter Bernstein, John Berry, Marc
Blitzstein, Sebastian Miles, Allen Boretz, Phoebe Brand, Bertolt Brecht, J.
Edward Bromberg, Sidney Buchman, Hugo Butler, Morris Carnovsky, Jerome
Chodorov, Aaron Copland, Jeff Corey, John Cromwell, Jules Dassin, Roger De
Koven, Paul Draper, Frank Capra, Cy Endfield, John Henry Faulk, Jerry Fielding,
Carl Foreman, John Garfield, Betty Garett, Will Geer, Jack Gilford, Bernard
Gordon, Lloyd Gough, Lee Grant, Dashiell Hammett, Sterling Hayden, Lillian
Hellman, Marsha Hunt, Sidney Kingsley, Sam Jaffe, Paul Jarrico, Gordon Kahn,
Victor Kilian, Howard Koch, Charles Chaplin ou Howard Fast. Claro que entre
estes havia comunistas, socialistas, simpatizantes e muitos que nada tinham a
ver com esse tipo de ideologia.
Para apoiar as
individualidades perseguidas, criou-se o “Committee for the First Amendment”,
em Setembro de 1947, fundado pelo argumentista Philip Dunne, a actriz Myrna Loy
e os realizadores John Huston e William Wyler, grupo a que aderiram muitos
nomes grandes da sétima arte: Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Henry Fonda, Gene
Kelly, John Garfiel, Edward G. Robinson, Judy Garland, Katharine Hepburn, Paul
Henreid, Dorothy Dandridge, Jane Wyatt, Ira Gershwin, Billy Wilder, Sterling
Hayden, Evelyn Keyes, Marsha Hunt, Groucho Marx, Lucille Ball, Danny Kaye, Lena
Horne, Robert Ryan, Frank Sinatra, entre outros.
Do outro lado da
barricada, também se criou uma liga para a preservação dos valores americanos.
Chamava-se “Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals”,
era presidida por Lela E. Rogers, mãe de Ginger Rogers, e contava igualmente
com nomes sonantes como Robert Taylor, Adolphe Menjou, Sam Wood, Norman Taurog,
Clarence Brown, Walt Disney. Clark Gable e Gary Cooper estiveram igualmente
ligados a esta “Aliança”, mas a sua acção nunca ficou claramente definida,
sendo vista por muitos como ingenuidade de impreparados politicamente. Gary
Cooper, por exemplo, apesar das suas simpatias, recusou-se a nomear fosse quem
fosse no seu depoimento perante a comissão. Outros houve, claramente conservadores,
como John Ford, que criticaram asperamente toda esta situação. Sobre este tema
existem vários filmes posteriores, como “Na Lista Negra”, de Irwin Winkler, com
Robert De Niro, “O Testa de Ferro”, de Martin Ritt, com Woody Allen e Zero
Mostel e, mais recentemente, “Boa Noite, e Boa Sorte”, de George Clooney.
O certo é que se
instalou em Hollywood e Nova Iorque um clima de terror que terá levado alguns
argumentistas e cineastas, politicamente fora de toda a suspeita de subversão,
mas defensores dos valores da legalidade e da democracia, a lutarem contra este
ambiente opressivo, propondo obras onde esse terror era violentamente
condenado. Entre essas obras inscreve-se claramente “O Comboio Apitou Três
Vezes”, curiosamente interpretado por Gary Cooper, realizado pelo insuspeito
Fred Zinnemann, mas escrito pelo muito “suspeito” Carl Foreman (pouco depois
exilado dos EUA), ao lado de um argumentista, produtor e realizador liberal
como Stanley Kramer.
O filme adquiriu assim
um estatuto de libelo anti-macartismo que, se agradou a muitos, terá provocado
a ira de alguns falcões de Hollywood, como John Wayne e Ward Bond, que se
aprestaram a condenar publicamente a película.
A verdade é que,
ultrapassando ventos e marés, esta é uma das obras-primas do cinema norte-americano
da década de 50 e um dos exemplos mais flagrantes da sua corrente liberal e
progressista.
O COMBOIO APITOU TRÊS VEZES
Título original: High Noon
Realização: Fred Zinnemann (EUA, 1952); Produção:
Carl Foreman, Stanley Kramer; Música: Dimitri Tiomkin; Fotografia (p/b): Floyd
Crosby; Montagem: Elmo Williams; Casting: Jack Murton; Design de produção:
Rudolph Sternad; Direcção artística: Ben Hayne; Decoração: Murray Waite;
Maquilhagem: Louise Miehle, Gustaf Norin; Direcção de produção: Clem Beauchamp,
Percy Ikerd; Assistentes de realização: Emmett Emerson; Som:Jean L. Speak, John
Speak; Efeitos especiais: Willis Cook; Companhias de produção: Stanley Kramer
Productions; Intérpretes: Gary
Cooper (Marshal Will Kane), Thomas Mitchell (Mayor Jonas Henderson), Lloyd
Bridges (Deputy Marshal Harvey Pell), Katy Jurado (Helen Ramírez), Grace Kelly
(Amy Fowler Kane), Otto Kruger (Juiz Percy Mettrick), Lon Chaney Jr (Martin
Howe), Harry Morgan (Sam Fuller), Ian MacDonald, Eve McVeagh, Morgan Farley,
Harry Shannon, Lee Van Cleef, Robert J. Wilke, Sheb Wooley, Jack Elam, etc. Duração: 85 minutos; Distribuição em
Portugal: Costa do Castelo (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos Estreia em Portugal: 8 de Junho de 1953.
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