Amarcord
FILMES QUE EU AMO / sessão 3
1.
MEMÓRIAS DA ADOLESCÊNCIA, EM
PORTALEGRE
O
documentário que realizei, para a RTP, “Humberto Delgado: “Obviamente,
demito-o!” (*), tinha como introdução uma evocação dos tempos que passei em
Portalegre, entre 1951 e 1958, sete anos durante os quais terei iniciado a
formação da sensibilidade, da cultura, dos gostos, da minha maneira de ser e de
sentir. Foram anos importantes, marcaram a adolescência, e por isso mesmo me
socorri dessa memória para falar do meu “encontro” com Humberto Delgado, que
nunca vi pessoalmente, mas que me foi “apresentado” nessa cidade, em 1958,
tinha eu 15 anos. Disse no comentário do filme que, nos anos 50, a vida decorria com a
normalidade de todos os dias. Salazar dizia que os portugueses deviam viver “habitualmente”
e assim se vivia no País em geral, e em Portalegre em particular. Entre
10 de Maio e 8 de Junho desse ano decorreu a campanha eleitoral dos candidatos
à Presidência da República, protagonizada pelo Almirante Américo Tomaz,
candidato de Salazar e da União Nacional, e pelo General Humberto Delgado,
apoiado por toda a Oposição ao Regime. Um miúdo de 15 anos tinha a noção do
cinzentismo e do desespero que vinham da miséria, da desolação, da falta da
liberdade. Eu pressentia isso, mas a minha vida corria “habitualmente”. Até que
um vendaval, um terramoto, assolou o país. A campanha do General Humberto
Delgado incendiou a imaginação de muitos. O seu exemplo de coragem e de luta
pela liberdade, também. Essa campanha e a fraude eleitoral com que terminou
transformaram-me a mim e a muitos milhares de outros em pessoas diferentes.
O
cinzentismo era a norma, apenas quebrado, aqui e ali, pela notícia de uma
revolta sufocada ou pela visão de um corpo sem vida, dependurado do ramo de uma
árvore, em suicídio de desespero.
Eu
gostava já muito de cinema, de ler e escrever, e as tipografias e os jornais
fascinavam-me. Lia imenso, via filmes sempre que podia no Teatro Portalegrense,
no Cine Parque ou no Cine Teatro Crisfal. Morava numa casa, na Rua de Elvas (no
primeiro andar do número 60, recordei-o quando regressei agora a Portalegre
para filmar alguns planos), estudava no liceu da cidade, era aluno de José
Régio. Estes eram os tempos…
Cultivava-se
o medo como forma de viver “habitualmente”, mas um miúdo de 15 anos não aprecia
isso… o medo. Um rapaz de 15 anos admira a coragem de quem ousa e a valentia de
quem se atira para a frente da batalha em nome de princípios de que não
abdica.
Salazar
falava de uma ditadura necessária, dos erros da democracia, do perigo da
oposição, da ameaça do comunismo, a que associava na repressão todos os que
consigo não pugnavam por um “Estado Novo” numa “União Nacional”. E escolhia
como candidato da situação, o Almirante Américo Tomaz…
Em
1958 eu tinha 15 anos e vivia em Portalegre. Escrevia
nos jornais da terra “coisas” sobre cinema e aprendia a compor com letras de
chumbo, nesses pesados dias de chumbo durante os quais se descobria também o
que era a censura.
Em
Portalegre existiam, então, três semanários. Um, “A Voz Portalegrense”, não se
lia muito, era o órgão oficial da “União Nacional”. Havia também “O Distrito de
Portalegre”, dependente da Diocese, e “A Rabeca”, claramente republicano,
ligado à Oposição, chefiado por um homem que muito me aturou por essa altura, o
Sr. Casaca. Um dia, foi ele que me deu dois pequenos opúsculos que falavam de
um “general sem medo” que queria algo de diferente para Portugal. O que então
li, o que então me contaram, sempre às escondidas, não mais me largou. Nem a
vergonha da fraude que manchou o País, de lés a lés, do continente às colónias,
de Norte a Sul.
Estas
são, mais ou menos, as palavras que acompanham o documentário. Elas fizeram-me
recordar esses tempos e a forma como definitivamente me aproximei da pessoa que
sou hoje, com as paixões que ainda conservo. Todas começaram ou se consolidaram
nessa cidade que se estende por uma encosta da Serra de São Mamede, e que o
poeta cantou numa dramática balada que corre de boca em boca e imortalizou esta
cidade “do Alto Alentejo, cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e
sobreiros”, fustigada pelo vento suão “que enche o sono de pavores, faz febre,
esfarela os ossos, e atira aos desesperados a corda com que se enforcam na
trave de algum desvão...”
Foi
em Portalegre que tive a minha primeira paixão por uma mulher, uma miúda da
minha idade, na verdade, curiosamente uma Laura, que partiu um dia da cidade e
me deixou lavado em lágrimas a ver desaparecer o carro onde a família seguia
rumo ao norte. O pai era juiz, fora colocado noutra cidade, e a perda da Laura
foi irremediável. Devíamos os dois andar pelos doze ou treze anos, mas foi
imagem que não mais perdi (nem achei). A seguir a essa Laura, outras paixões se
seguiram e me marcaram profundamente, ainda por essa cidade de ruas estreitas e
serpenteantes, apesar da principal se chamar “Direita”. Colegas de liceu, houve
algumas. Conservo a recordação de todas que me despertaram, nas emoções do
espírito e na tentação da carne, para os prazeres do amor.
Foi
também em Portalegre que comecei a escrever. Textos curtos, notícias sobre
cinema, entrevistas breves, enfim, o que me ia interessando e os dois jornais
da terra, onde eu colaborava, iam permitindo publicar. O que me apaixonava mais
era “A Rabeca”, do senhor Casaca (João Diogo Casaca) velho republicano, que
tinha a tipografia na rua 19 de Junho (antiga rua da Carreira). Fora na
juventude actor dramático e cantor, e depois instalou-se como tipógrafo, editor
e director de jornais. Foi nessa gráfica, de ambiente antigo, soturno, pesado,
mesmo com o seu quê de misterioso, pejada de móveis escuros, onde se compunham
jornais com letras de chumbo que se iam juntando até formarem palavras, frases,
artigos, foi aí que comecei a escrever. Via os empregados a compor, com ágeis
movimentos de mãos, trabalhando de pé, encostados a banquetas recheadas de
gavetas de alto a baixo, com tipos de letra diferentes, e ficava fascinado com
essa actividade mecânica, febril, incansável, que dava lugar a textos que se
liam e transmitiam ideias, factos, pesadelos ou esperanças. Foi aí que aprendi,
com dificuldade extrema, é certo, a manusear as letras de chumbo, e a compor as
minhas próprias notícias sobre filmes e actrizes. Foi nas páginas de “A Rabeca”
que vi as primeiras palavras escritas por mim circularem em folha de jornal. Assinava
o nome que hoje uso ou as iniciais LA, ou ainda, sobretudo no outro jornal da
terra, O…TAL (que era a inversão de Làtó, diminutivo que reunia os meus dois
nomes iniciais e pelo qual os meus pais por vezes me chamavam).
Um
outro jornal da terra era “O Distrito de Portalegre” (o único desses tempos que
ainda hoje se publica), ligado à diocese, onde pontificava o Cónego Anacleto,
amigo da casa de meus pais. A tipografia era muito mais arejada, luminosa,
ficava situada em frente à Sé Catedral. Os textos eram sobretudo de cariz
religioso, e a linha do jornal era muito mais conservadora na sua orientação
ideológica. Havia ainda um terceiro semanário na terra, “A Voz Portalegrense”,
órgão da “União Nacional” no distrito, mas aí nunca escrevi nada, vá-se lá saber
porquê. Não me puxava a mão para esses desígnios.
Escrever
era já uma paixão, mas ler era compulsivo. Desde as revistas em quadradinhos,
“O Papagaio”, “O Mosquito”, quando era mais novo, o “Mundo de Aventuras” e o
“Cavaleiro Andante”, em meados dos anos 50, até romances de certo fôlego, que
ia desencantar na biblioteca dos pais, ou que eles me ofereciam, em doses
massivas sobretudo pelos anos ou no Natal. Como o meu pai era pintor e se
interessava muito por livros sobre arte, havia vários lá por casa que me
fascinavam. Uns, de bolso, monografias sobre pintores. Outros, álbuns de certo
peso. Um, sobre o “Aleijadinho”, o escultor desse fabuloso Santuário de Bom
Jesus de Matozinhos, obra inspirada em santuários portugueses, que se encontra
em Congonhas do Campo, no Estado de Minas Gerais, impôs mesmo um desvio de
rota, aquando da minha primeira viagem de férias no Brasil, tal era a admiração
que me provocava desde essa altura.
Mas
“Os Miseráveis”, “O Príncipe e o Pobre”, “O Romance de um Rapaz Pobre”, “A Dama
das Camélias”, “Oliver Twist”, “As Pupilas do Senhor Reitor”, “Os Maias”, um
pouco de tudo ia passando sob os meus olhos maravilhados. E a poesia de José
Régio, lida em livros autografados pelo próprio, e que ainda hoje conservo
religiosamente. Por essa altura tinha jeitinho para desenhar e pintei, a lápis
de cores, uma “Fuga para o Egipto” que ofereci a José Régio, tendo recebido em
troca “O Príncipe das Orelhas de Burro”, autografado (“Ao Làtó, em troca duma
sua pintura que representa a “Fugida para o Egipto”, sem burro, oferece o seu
amigo Zé Régio, Portalegre, 1952”), num volume cartonado que abre com um
belíssimo desenho a cores que o romancista me ofertou também. Eu tinha dez
anos.
E
já gostava de futebol, nesses anos iniciais de liceu. Havia dois clubes em
Portalegre, um, o “Portalegrense”, outro, o “Estrela de Portalegre”, com
rivalidades óbvias. Apesar de o verde ser a minha cor a nível nacional
(Sporting Clube de Portugal, claro, e desde sempre e para sempre!), em
Portalegre as simpatias penderam mais para o azul do “Portalegrense”. Como
desde miúdo fui alto, já nessa altura andaria pelo metro e oitenta,
empurravam-me invariavelmente para a baliza, ignorando a minha ânsia de “meter
golos”. Fui parar a guarda-redes da equipa do liceu, e ainda fiz alguns jogos
nos juniores do “Portalegrense”, até que um frango monumental me afastou
irremediavelmente de uma carreira gloriosa na selecção nacional, quiçá. Mas
confiar no golpe de vista nunca foi apanágio de bom guarda-redes, e a bola
entraria por entre as mãos despreocupadas de quem olha o esférico e pensa que
ele passa por cima, e não tem em conta o movimento descendente de última hora.
Nesse jogo perdeu-se um guarda-redes, marcado pela íntima ignomínia de um
frango colossal. Nunca deixei, porém, de assistir aos jogos do Portalegrense, e
ainda hoje procuro nas páginas dos desportivos os resultados dos clubes da
terra. Infelizmente, não muito brilhantes.
Estudava
no liceu local. Chamava-se Mouzinho da Silveira. Era um casarão enorme, que
hoje sei não ser assim tão enorme, para onde se ia diariamente com um misto de
prazer e de terror. Muita coisa, boa e má, por lá se passou, das amizades aos
primeiros amores, das torturas provocadas por certos professores aos
ensinamentos que outros nos ofereciam com generosidade. O recreio, que ficava
lá para trás, era o momento de relaxe por que se ansiava... As melhores
recordações do liceu foram, obviamente, os primeiros amores. Mas havia bons
professores e matérias que me ocupavam com prazer. Tinha dezoito a Desenho, e
quase sempre negativa a Matemática. José Régio chumbou-me um ano a Francês, mas
o Inglês era a tragédia nas línguas, onde era bom era a Português. Gostava de
História, de Geografia, de Física, mas nunca fui um aluno exemplar. Passava, o
que já não era mau, mas foi no meu último ano em Portalegre que chumbei o 5º
ano. Meu único ano de chumbo. Repeti-o no ano seguinte, no Gil Vicente, em
Lisboa, e, no sexto, no Pedro Nunes, estive pela primeira e única vez, no
Quadro de Honra. Experimentei, pois, todas as emoções no liceu.
Nos
anos 50, como hoje, havia de tudo no ensino, professores que eram companheiros
mais velhos e mais sabedores, e carrascos que faziam valer o seu poder para
literalmente aterrorizarem quem lhe passava por perto. E havia ainda uma massa
de professores e alunos mais ou menos indiferentes, que não recordo, nem pela
positiva, nem pela negativa. Mas, apesar de tudo, o balanço é favorável. A
escola, por aquele tempo, era "o sítio onde se ia ter aulas". E ter
aulas, não era algo que a escola transformasse numa actividade excitante.
Dependia essencialmente dos professores, do seu saber e da sua generosidade. Ou
da ausência de tudo isso. Gostava que hoje a escola fosse um local para onde os
alunos fossem com vontade de irem aprender, conviver com os colegas e ouvir os
amigos mais velhos ensinarem-lhes coisas importantes para a sua vida. Mas será
que já mudou tanto? Essa, de Portalegre, e todas as outras, em Portugal?
Mas
tive pesadelos que não esqueço: um sinistro interrogatório, verdadeiramente
inquisitorial, com ameaças de inferno e labaredas eternas, que um padre,
professor de moral, um dia me fez, depois de me fechar à chave numa sala de
aula. Do alto do estrado, vociferando, é uma recordação que ainda hoje não me
abandonou, e que um dia, anos mais tarde, revi, tal e qual, num filme de
Fellini, creio que em “Amarcord”. Nesse dia aprendi o que era o terror e o
fanatismo de uma certa Igreja, que não desculpa os “pecados da carne”. Mas a
Igreja não ficou para sempre manchada no meu coração, porque havia um padre
Diogo e um cónego Anacleto, amigos da casa e amigos da tolerância, que
contrabalançaram a desdita. Agora ambos têm nomes nas ruas da cidade, enquanto
o outro nem eu lhe recordo o apelido.
Há
uns anos, um jornal de estudantes da terra entrevistou-me e perguntou-me quem e
o que eu retinha da minha passagem por Portalegre. Ao que respondi: “Tanta
gente, a começar pelo meu pai (agora também a minha mãe), e pelos tempos que
com ele vivi em Portalegre - acompanhei-o tantas vezes, quando ia de cavalete e
tintas, pintar para o campo -, continuando por tantos amigos, e tantos
acontecimentos que me deram um real prazer em passar esses anos da minha vida em Portalegre. Para
lá dos já por demais citados jornais, “A Rabeca” e “ O Distrito”, e os filmes vistos
no velho “Teatro Portalegrense” e no “Cine Parque”, a inauguração do “Crisfal”,
as idas ao futebol, torcer pelo “Portalegrense”, os passeios pelos arredores,
as festas populares, nas capelinhas que havia à volta da cidade e em São Mamede , o “Café Alentejano”
e o “Central”, onde ia tantas vezes com os meus pais, os passeios pelas
alamedas que partiam do Plátano até lá cima, o jardim da Corredoura e os versos
de José Duro, os bailes na Casa Amarela, a Páscoa na Sé e a visita pascal
anunciada por um sininho que descia a rua de Elvas, a casa de José Régio, que
visitava com regularidade com os meus pais, enfim tanta coisa... tanta gente e
tantos factos que afinal revejo na memória agora mesmo, enquanto estou a
escrever estas linhas.”
Passeando
pelo jardim da Corredoura, a meio há um pequeno monumento, onde se homenageia
outro vulto da terra, José Duro, autor de “Fel”, um livrinho que me acompanhou
na minha “romântica” adolescência. Os versos do autor que se reproduziam junto
ao fontanário, rezavam assim: “O livro que aí vai – obra dum incoerente / É um
livro brutal, é um poema a esmo. / Pensei-o pela rua olhando toda a gente /
Escrevi-o no meu quarto olhando-me a mim mesmo.” Muitas vezes fiz um desvio,
para os ler na pedra, apesar de os saber de cor. Portalegre é terra de poetas,
seguramente, e de poetas infelizes.
(*) Programado para ser exibido na RTP 1, no
dia 10 de Maio de
2008 , comemorando os 50 anos sobre o início da campanha eleitoral
do General Humberto Delgado.
2.
AMARCORD (1973)
“Amarcord” é uma crónica
da memória, como tal, escrita na primeira pessoa do singular. O próprio título
do filme (uma amalgama de dois termos: "amar" e "memória")
parece indicar a predominante visão singular (o resíduo de um tempo numa
memória) e uma emoção pessoal (amar). “Amarcord” refere recordações de infância
e adolescência que um determinado tempo histórico definiram, recordações que
marcaram igualmente uma personalidade (a de Fellini), e a ordenação convulsiva
da memória, feita de episódios ligados (e desligados) por uma corrente, cujo
significado ultrapassa a própria obra e terá de se ir encontrar no íntimo do
próprio autor. Uma ordenação que se expressa numa linguagem cinematográfica
pelo encadeado/montagem de sequências (cada uma delas constituindo um pequeno
todo, valendo por si só, núcleos esses que geram um significado mais vasto,
integrados num núcleo global) que permite restituir um tempo e um local
determinado: uma pequena cidade da província italiana (Rimini, ao que se supõe,
cidade natal de Fellini, durante o período do fascismo.
Fellini, na sua
deambulação pela memória, não pactua com o silêncio, não recua perante nada: se
as recordações são graves ou grotescas, se as situações roçam a (aparente, só
aparente) vulgaridade, se é jocoso ou ridículo o ambiente, tudo nos é
restituído por uma óptica francamente galvanizadora. O cabotinismo de Fellini é
evidente, à medida da sua desmedida. O que se aceita em quem é efectivamente
muito grande para não permitir comparações, para as ultrapassar, para se situar
acima de acusações deslocadas. Depois, personagens e situações galopam à
conquista do público. Uma conquista que não implica a abdicação do espectador,
mas muito pelo contrário. Fellini conquista o público, acordando-o (melhor
diríamos, na ocorrência, recordando-o). É o tempo do fascismo com a prepotência
dos interrogatórios, a histeria da violência, a brutalidade da exploração, mas
também é o tempo do risível fascismo ao nível das paradas militares a trote, do
fascismo quotidiano de um ensino mediavalesco, numa pequena cidade de
província, onde os conflitos sociais e políticos, se bem que agravados por um
lado, se amenizam numa convivência que é de todos, como de todos é Gradisca.
A crónica parece escrita
em tons menores, mas subitamente temos diante de nós um temível painel de uma
época brutal. E, por detrás dessa brutalidade, os rostos de homens e mulheres,
de crianças e velhos, de loucos e prostitutas, de tocadores de
"acordéon" ou de príncipes decadentes, todos eles na enorme
fragilidade de uma condição humana, aqui e ali vilipendiada e terrivelmente
ofendida, mas intocável no que de essencial encerra: a enorme ternura que uns
olhos despertam, a majestosa gravidade de um grito louco. A amargura da
procurada felicidade por caminhos tortuosos, a difícil aprendizagem do ofício
de homem.
Julgamos que este é um
dos grandes filmes de Fellini, uma das suas obras-primas indiscutíveis. O
cineasta encontra-se em grande forma, o seu discurso aparentemente caótico é
admirável de espontaneidade e observação, numa projecção, diríamos
psicanalítica, de uma reconstrução desordenada do inconsciente. As figuras que
vai encontrando/ recordando/criando são inesquecíveis, as situações que se
sucedem assemelham-se a quadros de uma fulgurante revista de variedades.
Fellini prolonga as suas feéries de “8 ½” ou de “Roma”, profundamente pessoais,
mas vai mais longe, a “Os Inúteis”, por exemplo, recriando momentos da sua
aventura pessoal, até aí na sombra. Conhecemos agora os “vitelloni” em
adolescentes, em redor de Titta, que é obviamente um alter-ego de Fellini, ao
mesmo tempo que é uma recordação de um colega seu de escola, Luigi Banzi, filho
de um truculento anarquista, sobrinho de um tio louco, que sobe às árvores a
gritar que quer uma mulher, e neto de um avô que gosta de passar a mão pelos
rabos das criadas.
O filme foi quase todo
rodado no estúdio 5 da Cinecittá, conferindo-lhe esse lado de memória
reconstruída que tão bem lhe assenta e o define. O realismo não impera,
substituído por um imaginário mais real que a realidade, como Fellini gostava
de afirmar. O cineasta oferece-nos simultaneamente o retrato de uma província
italiana durante o período fascista, e a sua crítica, grotesca ou caricatural.
Os grandes núcleos da sociedade são escalpelizados, a política, a família, a
religião, o poder económico, a sexualidade.
A mulher mais uma vez
ocupa destacado lugar, com a presença de luxuriantes representantes, como
Gradisca, que todos cobiçam e acaba por casar com um militar, Volpina, que a
todos se oferece, ou a dona de uma mercearia/tabacaria, que simboliza a
exacerbada sexualidade dos adolescentes. Mas há também a mãe de Titta,
repressiva e maternal. A religião não é esquecida, com as divertidas
confissões, ou a presença de uma freira anã. Os militares e os políticos são
causticados, pelas cenas de tortura, pelas marchas grotescas, pela homenagem ao
político fascista de visita a Rimini. O cinema e o teatro não deixam de surgir,
como momentos de evasão. O mar, o pontão a sinalizá-lo, o navio (o “Grand Rex”,
o maior navio da Itália fascista), como mito de uma Itália imperial, são outros
momentos a referir.
Justificadamente,
“Amarcord” arrecadou o Oscar de Melhor Filme em Língua não Inglesa e o sucesso
público do filme foi imenso.
AMARCORD
Título original: Amarcord
Realização: Federico Fellini
(Itália, França, 1973); Argumento: Federico Fellini, Tonino Guerra; Produção:
Franco Cristaldi; Música: Nino Rota; Fotografia (cor): Giuseppe Rotunno;
Montagem: Ruggero Mastroianni; Design de produção: Danilo Donati; Direcção
artística: Giorgio Giovannini; Guarda-roupa: Danilo Donati; Maquilhagem: Rino
Carboni, Amalia Paoletti; Direcção de produção: Alessandro Gori, Lamberto
Pippia, Gilberto Scarpellini; Assistentes de realização: Liliane Betti, Mario
Garriba, Maurizio Mein, Gerald Morin; Departamento de arte: Andrea Fantacci,
Italo; Som: Oscar De Arcangelis; Efeitos especiais: Adriano Pischiutta;
Companhias de produção: F.C. Produzioni, PECF;Intérpretes: Pupella Maggio (Miranda Biondi, mãe de Titta), Armando
Brancia (Aurelio Biondi, pai de Titta), Magali Noël (Gradisca), Ciccio
Ingrassia (Teo), Nando Orfei (Patacca), Luigi Rossi (advogado), Bruno Zanin
(Titta Biondi), Gianfilippo Carcano (Don Baravelli), Josiane Tanzilli
(Volpina), Maria Antonietta Beluzzi, Giuseppe Ianigro, Ferruccio Brembilla (chefe
fascista), Antonino Faà di Bruno (Conde Lovignano), Mauro Misul (professor de
filosofia), Ferdinando Villella (Fighetta), Antonio Spaccatini (polícia),
Aristide Caporale (Giudizio), Gennaro Ombra (Biscein), Domenico Pertica (cego),
Marcello Di Falco (o Principe), Stefano Proietti (Oliva), Alvaro Vitali (Naso),
Bruno Scagnetti (Ovo), Fernando De Felice (Ciccio), Bruno Lenzi (Gigliozzi),
Gianfranco Marrocco, Francesco Vona, Donatella Gambini, Dina Adorni, Paolo
Baroni, Bruno Bertocci, Marcello Bonini Olas, Dante Cleri, Mario Del Vago,
Francesco Di Giacomo, Dario Giacomelli, Veriano Ginesi, Mario Liberati, Franco
Magno, Cesare Martignon, Francesco Maselli, Lino Patruno, Fredo Pistoni, Eros
Ramazzotti, Faustone Signoretti, Mario Silvestri, Fides Stagni, etc. Duração: 123 minutos; Classificação
etária: M/ 12 anos (DVD), M/ 17 anos (estreia de cinema); Distribuição em
Portugal (DVD): Warner; Data de estreia em Portugal: 19 de Setembro de
1974.
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