Breve Encontro




FILMES QUE EU AMO / sessão 12

1.  DAVID LEAN
Tenho vários realizadores de eleição. Orson Welles, desde logo, mas John Ford, David W. Griffith, Alfred Hitchcock, Billy Wilder, François Truffaut, Jean Renoir, Vitorio De Sica, Ingmar Bergman, Federico Fellini, Luis Bunuel, F. W. Murnau, Francis Ford Coppola, Jcques Tati, Nicholas Ray, Robert Breson, Frank Capra, Charlie Chaplin, Buster Keaton e tantos outros encontram-se na linha da frente das minhas preferências. Muitos são muito óbvios. Outros, nem tanto, mas David Lean está igualmente entre os cineastas que pela finura da sua sensibilidade, pelo rigor da sua realização, pela mestria na direcção de actores, pela discreta posição nos quadros dos grandes mestres da cinematografia mundial me merece uma atenção muito especial.
Nasceu a 25 de Março de 1908, em Croydon, Surrey, Inglaterra, Reino Unido e faleceu a 16 de Abril de 1991, em Londres. Em 2002, a revista “Sight & Sound”, pertencente ao British Film Institute, elegeu o Top dos realizadores mundiais e David Lean apareceu em nono lugar. Entretanto, numa outra votação, para os “Top 100 British Films”, também organizada pelo British Film Institute, quatro dos seus filmes apareciam entre os onze primeiros. David Lean é um dos autores preferidos de cineastas como Steven Spielberg ou Stanley Kubrick. Recordado por épicos como “The Bridge on the River Kwai” (1957), “Lawrence of Arabia” (1962), “Doctor Zhivago” (1965), ou “A Passage to India” (1984), teve, no entanto, outras obras absolutamente inesquecíveis como as adaptações de Charles Dickens, “Great Expectations” (1946) e “Oliver Twist” (1948), ou a admirável colaboração com Noel Coward nesse sublime drama, “Brief Encounter” (1945).


Filho de Quakers, Francis William le Blount Lean e Helena Tangye, frequentou uma escola dirigida por esta religião, a “Leighton Park School in Reading”. Mas passava todo o tempo livre no cinema e, em 1927, resolveu empregar-se nos estúdios da Gaumont, distribuindo chá e transportando bobines de filmes. Rápido passou a montador e assistente de realização.
Montou dois filmes de Gabriel Pascal, segundo peças de George Bernard Shaw, “Pygmalion” (1938) e “Major Barbara” (1941), assim como obras de Powell & Pressburger, “49th Parallel” (1941) e “One of Our Aircraft Is Missing” (1942), após o que passou a dirigir as suas próprias obras. Na primeira, “In Which We Serve” (1942), colaborou com Noël Coward, a que se seguiram “This Happy Breed” (1944), “Blithe Spirit” (1945) e “Brief Encounter” (1945). A sua relação com o teatro manteve-se: “The Sound Barrier” (1952) foi escrito pelo dramaturgo Terence Rattigan e “Hobson's Choice” (1954) baseava-se numa peça de Harold Brighouse. Depois do sucesso do drama romântico “Summertime” (1955), totalmente rodado em Veneza, David Lean afirma-se nas superproduções épicas, demonstrando um cuidado e uma sensibilidade invulgares neste tipo de películas, o que lhe granjeou excelente reputação. Antes de falecer, em 1991, preparava-se para adaptar ao cinema um romance de Joseph Conrad, “Nostromo”, prevendo um elenco de luxo, Marlon Brando, Paul Scofield, Anthony Quinn, Peter O'Toole, Christopher Lambert, Isabella Rossellini, Dennis Quaid, Alec Guinness e Georges Corraface no protagonista. Trabalhou o guião com Christopher Hampton e Robert Bolt, mas a sua morte impediu a concretização. Com base neste projecto, haveria de surgir, anos mais tarde, 1996, "Nostromo" uma minissérie para televisão, dirigida por Alastair Reid, com um elenco que nada tinha a ver com o escolhido por Lean: Brian Dennehy, Albert Finney, Colin Firth, entre outros.


2. BREVE ENCONTRO
Laura Jesson (Celia Johnson) é uma discreta dona de casa. Vive em Ketchworth, com o marido, um filho e uma filha. Viaja uma vez por semana de comboio a Milford, onde faz compras, troca livros na biblioteca e vai ao cinema. O Dr. Alec Harvey (Trevor Howard) é igualmente casado, tem dois filhos, vive e dá consultas em Churley, e vai semanalmente a Milford substituir um colega no hospital local, onde aproveita para aprofundar os seus conhecimentos especializados sobre pneumologia perante os efeitos de alguns ofícios. São duas vidas recatadas, que vivem o seu dia a dia sem sobressaltos. Até que, por acaso, se cruzam na plataforma da estação de Milford. Laura deixou entrar uma cinza para um dos olhos e Alec apresta-se para a livrar do incómodo cisco. Agradecimentos da praxe, um café de circunstância, uma despedida formal. Ela regressa a casa, onde o marido a acolhe como sempre, amável e prestável, passando os serões a resolver problemas de palavras cruzadas. Um beijo de boa noite e o dia que se segue. Igual. Sem sobressaltos. Numa felicidade que dir-se-ia perfeita. Sobretudo para quem não conheceu nunca o sobressalto da paixão. Que, no entanto, passa a habitar os encontros cada vez mais regulares de Laura e Alec, até levar à confissão de um amor e ao desejo da sua concretização, que nunca chega.
A estação de caminhos de ferro de Milford é o cenário central desta história de amor que, desde início, se supõe desencontrada: os seus comboios partem em direcções contrárias, eles sabem que “nenhum deles é livre para amar o outro.” Raras vezes um cenário natural terá tamanha importância na definição dramática de um clima. A passagem dos comboios, o rasto de fumo por eles deixado, a iluminação esconsa, o isolamento das plataformas, os enquadramentos dos planos, em profundidade de campo, o ar intimista e secreto, mas perigoso, do cafezinho da estação, onde a uma mesa do canto se acoitam os apaixonados, segredando impossibilidades de sonhos, tudo isto faz deste “décor” um local de apetecível mistério, refúgio arrojado de impronunciáveis amores, tímido anseio de “inflamadas paixões” que ambos vêem no cinema local, de mãos dadas, no escuro do primeiro balcão.
“Nada dura para sempre, nem a felicidade, nem a infelicidade”, sentencia Alec, e o efeito da frase é, neste contexto, ambíguo. Realmente nada dura para sempre, há momentos de escondida sofreguidão que, todavia, se descobrem tolhidos pelo dilema moral que a situação encerra, entre escolher o amor e aceitar a mentira.
Mas o eclodir do amor comporta os seus riscos. A confortável vida familiar, a roçar o entediante, convida à aventura, ao risco, ao proibido. Passear de mãos dadas, à chuva, pelo anoitecer de uma Milford de recantos sombrios é seguramente um risco apetecível. Tanto mais que a fotografia a preto e branco de Robert Krasker é deslumbrante e o concerto para piano nº 2 de  Rachmaninov é uma banda sonora inspirada, que sublinha devidamente as emoções sem as enfatizar em demasia.
O médico sente igualmente o seu entusiasmo a transbordar. Ele só conhecia esta felicidade com o trabalho, com a paixão que o avassala, como o descreve a Laura, numa dessas conversa de café. Ser médico é jogar “com essa paixão, sentir essa vocação, tal como um escritor, um pintor”. Laura compreende o que Alec diz. Ela vive agora esse arrebatamento, esse impulso. Um “flirt” com um estranho rapidamente se transforma nessa vertigem. Mas, em simultâneo, sobe o sentimento de culpa, sofre intimamente da indignidade dos gestos e das falsidades, sente a sordidez de certas situações, sobretudo quando é apanhada em falta no apartamento do colega de Alec, regressado a destempo.
Esta intriga podia derrapar facilmente para o melodrama xaroposo ou para um moralismo puritano intragável, mas o segredo de David Lean é esse mesmo, manter o nível altíssimo, nunca pactuar com a facilidade, nunca ir pelo caminho mais simples. Manter a ambiguidade que permite desenvolver as emoções sem recurso a chavões, o que vai desembocar num final de sublime obscuridade ou clareza, quando o marido vê Laura olhá-lo e se aproxima dela para lhe dizer: “Estiveste afastada muito tempo. Obrigado por teres voltado para mim”. O adultério não concretizado, mas assumido, levou o filme a ser proibido na Irlanda, à data da estreia, “por mostrar o adultério sob uma perspectiva simpática”. O que não deixa de ser surpreendente por um lado, mas demonstra, por outro, a ambiguidade da proposta.


“Brief Encounter” parte de uma peça teatral de Noel Coward (“Still Life”), adaptada brilhantemente ao cinema por David Lean (e pelo próprio Noel Coward, enquanto um dos responsáveis pelo empreendimento, como produtor), juntamente com Anthony Havelock-Allan, e Ronald Neame. O filme estreia-se em 1945, o que pressupõe uma rodagem durante a II Guerra Mundial, com a Inglaterra a sofrer as consequências dos bombardeamentos nazis e as suas tropas a combaterem no continente europeu. O final da obra terá sido pacificador para os soldados que regressam a casa, e encontram as mulheres à sua espera, “eles, que nessa altura regressam para elas”. Mas há um outro aspecto que é interessante sublinhar: a vida quotidiana na Inglaterra desse tempo, que transparece subtilmente durante a visão deste “Breve Encontro”, com a curiosidade de se perceber que, mesmo durante a brutalidade da guerra, a cinematografia inglesa manteve o nível que esta obra testemunha e a fina e complexa sensibilidade que a mesma ostenta. Com interpretações de uma delicadeza extrema, onde Celia Johnson e Trevor Howard sobressaem, mas onde é igualmente de referir o trabalho de Stanley Holloway (Albert Godby) e Joyce Carey (Myrtle Bagot), um casal de divertidos “compères”, que enchem de humor os seus diálogos no balcão do café da gare de Milford. 
Creio que muitos filmes se realizaram, posteriormente, tendo “Breve Encontro” como referência. Um deles terá sido possivelmente o magnífico “As Pontes de Madison County”, de Clint Eastwood.

BREVE ENCONTRO
Título original: Brief Encounter
Realização: David Lean (Inglaterra, 1945); Argumento: Anthony Havelock-Allan, David Lean, Ronald Neame, segundo peça teatral de Noel Coward ("Still Life"); Produção: Noel Coward, Anthony Havelock-Allan, Ronald Neame; Música: Rachmaninov (Concerto para Piano No. 2) (tema musical): Percival Mackey (música adiciona); John Hollingsworth (director musical); Fotografia (p/b): Robert Krasker; Montagem: Jack Harris; Direcção artística: Lawrence P. Williams; Direcção de Produção: Anthony Havelock-Allan, E.J. Holding, Ronald Neame; Assistentes de realização: George Pollock, Victor Wark; Departamento de arte: G.E. Calthrop, William Kellner; Som: Desmond Dew, Stanley Lambourne, Harry Miller; Efeitos especiais: George Blackwell; Efeitos visuais: Charles Staffell; Companhias de produção: Cineguild; Intérpretes: Celia Johnson (Laura Jesson), Trevor Howard (Dr. Alec Harvey), Stanley Holloway (Albert Godby), Joyce Carey (Myrtle Bagot), Cyril Raymond(Fred Jesson), Everley Gregg (Dolly Messiter), Marjorie Mars (Mary Norton), Margaret Barton (Beryl Walters), Wilfred Babbage, Alfie Bass, Wallace Bosco, Sydney Bromley, Nuna Davey, Valentine Dyall, Irene Handl, Dennis Harkin, Edward Hodge, Jack May, Avis Scott, George V. Sheldon, Richard Thomas, Henrietta Vincent, etc. Duração: 86 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal (cinema): 14 de Abril de 1947.

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