Blade Runner



FILMES QUE EU AMO / sessão 11
    1. FICÇÃO CIENTIFICA?
Nas décadas de 40, 50, até meados da de 60 a ficção científica tinha muito de ficção e pouco de científica. Por essa altura andava eu por salas de cinema como o Teatro Portalegrense, o Cine Parque e o Cinema Crisfal, em Portalegre, terra onde passei oito anos da minha meninice (entre 1950 e 1958), e os cinemas das estâncias de veraneio onde passava os meses (na altura, meses!) de férias, Ericeira (onde hoje se encontra a Casa da Cultura Jaime Lobo e Silva) e Praia das Maçãs (um barracão improvisado junto ao local onde chegavam e partiam os eléctricos da linha de Sintra). Foi por essas salas que vi muitos dos filmes de ficção científica que fizeram as minhas delícias. Na maioria eram ingénuos, mas ameaçadores.
Este género de obras, que fica a dever muito à imaginação e inventiva dos seus criadores, já por esses anos  tinha antepassados ilustres, desde a espantosa “Viagem à Lua”, de George Méliès (1903), até ao fulgurante “Metrópoles” de Fritz Lang, passando por muitos outros títulos, quer do expressionismo alemão, quer da época de ouro da Universal Pictures, em plena década de 30. Os anos 40 foram dominados pelos monstros saídos das experiências nucleares que, neste campo, deram pano para mangas, e a década seguinte, com os discos voadores e as ameaças vindas de fora, marcaram o intenso clima de guerra fria. As ameaças que vinham do exterior eram pressentidas e entendidas como provenientes da URSS e satélites.





Viram-se filmes que hoje em dia se degustam com prazer pela sua demagogia imediata e ingenuidade. “O Planeta Proibido”; “A Terra em Perigo”, “A Ameaça”, “Vieram do Espaço”, “A Guerra dos Mundos”, “Os Invasores de Marte”, “A Invasão dos Discos Voadores”, “Quando os Mundos Chocam”, “O Monstro da Lagoa Negra”, “A Ameaça do Outro Mundo”, “A Mosca” ou o nada subtil “O Planeta Vermelho”. Mas havia também obras que contrariavam estas sucessivas ameaças, como “O Dia em que a Terra Parou”, de Robert Wise, que mostrava extraterrestres pacíficos e humanos muito desconfiados e aguerridos. Foram tempo felizes, a ver o que hoje em dia são “objectos de culto” e que, nessa altura, eram espantosas aventuras que abriam caminho à imaginação, sem se pensar muito bem que, por detrás delas, poderia estar uma poderosa máquina de propaganda ou de contrainformação. Em Portugal não se viam filmes soviéticos, mas por lá também se fabricavam idênticos panfletos.
Com a idade adulta e a década de 60 surgiu “2001: Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick (1968), e tudo se alterou na ficção científica. Agora a ficção continuava a ser ficção, mas já tinha muito de científica. Os filmes passaram a ter conselheiros especializados e elevaram-se a considerandos filosóficos sobre o futuro e o destino do homem. Atrás de “2001” surgiram dezenas de obras muito interessantes, como “Blade Runner”, “Encontros Imediatos do Terceiro Grau”, “ET”, “A Origem”, “Avatar” e séries que arregimentaram milhões de fieis seguidores: “A Guerra das Estelas”, “Matrix”, “O Planeta dos Macacos”, Star Trek”, “Mad Max”, “Alien”, entre outras.
A ficção científica continua a despertar uma enorme atenção em plateias de todo o mundo, substituindo-se em muitos casos a géneros muito populares no passado que cederam no interesse do público. Muitos filmes de ficção científica nada mais são do que a transposição dos esquemas do western para o espaço, veja-se o caso de “Star Wars” ou “Star Trek”, por exemplo. Noutros casos, o policial e o filme negro impuseram as suas regras na “science fiction”. Veja-se o excelente caso de “Blade Runner”.

    2. BLADE RUNNER: PERIGO IMINENTE (1982)


“Blade Runner”, de Ridley Scott, é uma obra-prima e digo-o com plena convicção. Não uma obra-prima do cinema de ficção científica, mas uma obra prima tout court, apenas do cinema. Raras vezes um filme impõe tão rapidamente e de forma tão sustentada ao longo de toda a sua projecção um ambiente e uma densidade tão forte, tão intensa, tão “real” apesar de se tratar de uma projecção de futuro. Diga-se que esse é mesmo o aspecto que, para mim, torna “Blade Runner” tão fascinante. A direção de arte, assinada por Lawrence G. Paull, David Snyder e Linda DeScenna, é fabulosa, e os efeitos especiais visuais, da responsabilidade de Douglas Trumbull, Richard Yuricich e David Dryer, são igualmente brilhantes, sem se imporem com malabarismos inúteis. O que vemos é o estritamente indispensável, nada para encher o olho ao espectador. Mas falando ainda do chamado campo técnico, a fotografia de Jordan Cronenweth é excelente, o tratamento sonoro magnífico e a partitura musical de Vangelis acompanha com inspiração o desenrolar da acção.
Chamar a primeiro plano estas características ditas técnicas, não é uma forma de amarrar o filme a estas coordenadas, mas, muito pelo contrário, mostrar como elas se podem colocar harmoniosamente ao serviço de uma ideia central. Na verdade, o centro criador de “Blade Runner” é obviamente Ridley Scott, que comanda com invulgar perícia todos os elementos postos à sua disposição para conceber uma obra de uma coerência total. 
O argumento de “Blade Runner” é o principio fundador da obra. Escrito por Hampton Fancher e David Peoples, baseia-se no romance “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, de Philip K. Dick, o que é, desde logo, uma boa referência.
O filme tem por cenário Los Aneles, em 2019, e mostra-nos uma metrópole futurista, é certo, a relembrar em muito o “Metrópolis”, de Fritz Lang, mas ameaçadoramente à beira de uma catástrofe, de uma tragédia que as imagens vão sugerindo. Um ambiente denso e pesado, que os néons não conseguem disfarçar, uma chuva intensa e persistente, multidões que se acotovelam nas avenidas, alheias a tudo o que se passa à sua volta, quer sejam carros de polícia com as sirenes ligadas, quer sejam cenas de tiros e cadáveres a juncarem o pavimento. O ar parece irrespirável, a poluição é evidente e dir-se-ia que Ridley Scott e a sua equipa foram capazes de antever, esperemos que com algum exagero, a América de Trump e da sua recusa em aceitar as alterações climatéricas. Em 2019 veremos.
Nesta cidade, que não é mais do que o cenário ideal para um neo-filme negro, surge o ex-polícia Rick Deckard (Harrison Ford), que é intimado pelo seu antigo chefe, Bryant (M. Emmet Walsh), a desempenhar uma nova missão. Deckard foi, no passado, um “caçador de replicantes”, homens robots, com a duração limite de quatro anos de vida, que, quando se revoltavam ou amotinavam, eram "aposentados", belo eufemismo para designar a sua eliminação). Os replicantes são criados por uma companhia, a Corporação Tyrell, que, entre outros, lança no mercado os Nexus-6, que são utlizados sobretudo em trabalhos noutros planetas entretanto colonizados pelos humanos. Mas alguns replicantes regressam a terra, e procuram inverter o curso das suas curtas existências. Rick Deckard é contratado para eliminar essa célula de rebeldes, o que vai assumir com plena firmeza. O grupo é constituído por Roy Batty (Rutger Hauer), Leon Kowalski (Brion James), Zhora (Joanna Cassidy) e Pris (Daryl Hannah). O filme negro futurista com todos os ingredientes, desde o policia desiludido, o ambiente pantanoso, cívico e moralmente conturbado, o clima de tragédia latente, as imagens inquietantes, as “femmes fatales” habituais, aqui replicantes ou não.


Mas neste universo de humanos e replicantes nada é simples e nunca se sabe muito bem quem é quem e ao serviço de quem. Uma dúvida persiste: será Rick Deckard ele mesmo um replicante?
“Blade Runner” não é apenas um magnífico filme de ficção científica, mas muito mais do que isso, uma meditação dorida e quase desesperado sobre o futuro do homem na terra, e sobre alguns dos grandes problemas que o futuro e as descobertas tecnológicas nos reservam. A possibilidade de replicantes animais é já uma realidade, que o filme confirma, a existência de replicantes humanos num futuro muito próximo é uma hipótese com grande plausibilidade.
Por tudo isso “Blade Runner” é um desafio brilhante não só à nossa imaginação quanto ao futuro, mas à nossa avaliação da realidade do presente.
Desde a sua estreia, em 1982, o filme foi conhecendo diversas versões. A primeira terá sido a mais curta, cortada pelos produtores, e a menos fiel às ideias do realizador. Depois seguiram-se várias outras até que, em 2007, a Warner Bros. lançou a versão final, comemorativa dos 25 anos, totalmente remasterizada, sendo lançada em salas de cinema e, posteriormente, em cinemas selecionados e igualmente em DVD, e Blu-ray.
Entretanto, em 2017, surgiu “Blade Runner 2049”, uma realização de Denis Villeneuve, com argumento de Hampton Fancher, Michael Green, ainda segundo personagens idealizados por Philip K. Dick, e desta feita com um elenco composto por Ryan Gosling, Dave Bautista, Robin Wright, Mark Arnold, Ana de Armas, entre outros, nos quais se inclui Harrison Ford num pequeno papel que faz a ligação entre os dois títulos. Excelente sequela, o que não costuma ser habitual.

Título original: Blade Runner
Realização: Ridley Scott (EUA, 1982); Argumento: Hampton Fancher, David Webb Peoples, segundo romance de Philip K. Dick (Do Androids Dream of Electric Sheep?); Produção: Charles de Lauzirika, Michael Deeley, Hampton Fancher, Brian Kelly, Ivor Powell, Paul Prischman, Jerry Perenchio, Ridley Scott, Run Run Shaw, Bud Yorkin; Música: Vangelis; Fotografia (cor): Jordan Cronenweth; Montagem: Marsha Nakashima, Terry Rawlings, Jane Feinberg, Mike Fenton, Marci Liroff; Design de produção: Lawrence G. Paull, David L. Snyder; Decoração: Linda DeScenna, Leslie McCarthy-Frankenheimer, Thomas L. Roysden, Peg Cummings; Guarda-roupa: Michael Kaplan, Charles Knode; Maquilhagem: Michael Mills, Shirley Padgett, Marvin G. Westmore, John Chambers, Bridget O'Neill; Direcção de Produção: Alan Collis, C.O. Erickson, John W. Rogers; Assistentes de realização: Newt Arnold, Morris Chapnick, Peter Cornberg, Donald Hauer, Victoria E. Rhodes, Richard Peter Schroer; Departamento de arte: Jerry Allen, William Biggerstaff, Jeff Clark, Mentor Huebne, Crit Killen, Sherman Labby, Terry E. Lewis, Basil Lombardo, Dave Margolin, Syd Mead, James F. Orendorff, Tom Southwell, James T. Woods; Som:  Bud Alper, Gene Ashbrook, Beau Baker, Graham V. Hartstone, Mike Hopkins, Gerry Humphreys, Peter Pennell, John Vincent, Matt Vowles; Efeitos visuais: Douglas Trumbull, Richard Yuricich, David Dryer; Efeitos especiais: David Dryer, Ian Hunter, etc.  Intérpretes: Harrison Ford (Rick Deckard), Rutger Hauer (Roy Batty), Sean Young (Rachael), Edward James Olmo (Gaff), M. Emmet Walsh (Bryant), Daryl Hannah (Pris), William Sanderson (J.F. Sebastian), Brion James (Leon Kowalski), Joe Turkel (Dr. Eldon Tyrell), Joanna Cassidy (Zhora), James Hong (Hannibal Chew), Morgan Paull (Holden), Kevin Thompson, John Edward Allen, Hy Pyke, Kimiko Hiroshige, Bob Okazaki, Carolyn DeMirjian, Ben Astar, Judith Burnett, etc. Companhias de produção: The Ladd Company, The Shaw Brothers, Warner Bros., Blade Runner Partnership (Jerry Perenchio and Bud Yorkin present); Duração: 117 minutos; 110 minutos, versão reduzida; Distribuição em Portugal: Warner Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 25 de Fevereiro de 1983 (Fantasporto Film Festival); Estreia de “director's cut”: Fevereiro de 1993 (Fantasporto Film Festival).


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