A Bela e o Monstro
FILMES QUE EU AMO / sessão
10
1.
SURREALISMO
E VANGUARDAS
As vanguardas dos anos 20 e 30 sempre me
fascinaram. Surgiram um pouco por toda a Europa, e mesmo noutros pontos do
globo, da América do Norte à América do Sul, mas na Europa tiveram o condão de
andar (quase) sempre a par de ditaduras, antecipando-as, por vezes saudando-as,
depois engolidas pelos ditadores. Aconteceu assim com Marinetti e os futuristas
na Itália de Mussolini, o mesmo se passando com os construtivistas na
recém-criada URSS, com o expressionismo alemão que antecedeu a subida ao poder
de Hitler (que o declarou arte degenerada, bem assim como todas as outras
vanguardas), com o modernismo português, de Fernando Pessoa e Almada Negreiros
ou Santa Rita pintor, que apoiaram de inicio Salazar e o Estado Novo, para
depois se afastarem, com Portinari e Di Cavalcanti no Brasil de Getúlio Vergas,
sendo por ele perseguidos, e poderia continuar a enumerar curiosos
paralelismos.
As ditaduras de direita e de esquerda sempre
quiseram abalar os privilégios e o conformismo da burguesia e nisso concordavam
com as vanguardas. O choque teria de verificar quando as vanguardas aspirassem
à liberdade e as ditaduras a reprimissem.
Paris, França, foi um exemplo excepcional. As
vanguardas coexistiram nas décadas de 20 e 30 e o país só iria cair nas garras
dos nazis nos anos 40, sem relação alguma. Foi uma ocupação. Depois dos
impressionistas, ainda em finais do sec. XIX, surgiram os fauve, os cubistas,
os dadaístas, os futuristas, os abstratos, os surrealistas.
Fiquemos, por agora, nos surrealistas. Em
1924, surgiu o Manifesto Surrealista e em redor do movimento reuniram-se nomes
como os do poeta Guillaume Apollinaire (1886-1918), que terá criado a
designação, de Antonin Artaud (1896-1948), dramaturgo, dos poetas e escritores
Paul Éluard (1895-1952), Louis Aragon (1897-1982), Jacques Prévert (1900-1977)
e Benjamin Péret (1899-1959). Entre os artistas plásticos ali se juntaram
italianos, como Alberto Giacometti (1901-1960), ou Vito Campanella (1932), os
espanhóis Salvador Dali (1904-1989), Juan Miró (1893-1983) e Pablo Picasso, o
belga René Magritte (1898-1967), o alemão Max Ernst (1891-1976) e o cineasta
espanhol Luis Buñuel (1900-1983). Entre os companheiros de estrada dos
surrealistas, encontram-se outros nomes que, no entanto, eram mal tolerados
pelos ortodoxos surrealistas, e entre eles o de Jean Cocteau. Davam-se, mas não
se amavam. A homossexualidade assumida do poeta, pintor, dramaturgo e cineasta
nunca foi bem vista pelo olhar dos chefes de fila dos surrealistas.
Em Portugal, o surrealismo surge a partir de
1936, "em experiências literárias «automáticas» realizadas por António
Pedro e alguns amigos". Em 1940, o mesmo António Pedro expõe com António
Dacosta (e Pamela Boden): " A exposição reunia dezasseis pinturas de
Pedro, dez de Dacosta e seis esculturas abstratas de Pamela Boden [...]. O
surrealismo de que se falara até então vagamente, desde 1924, [...] irrompia
nesta exposição, abrindo a pintura nacional para outros horizontes que ali
polemicamente se definiam", afirma José Augusto França. Alguns anos depois
(1947), irá surgir o “Grupo Surrealista de Lisboa”, que reúne, nas artes e nas
letras, Cândido Costa Pinto, Vespeira, Fernando Azevedo, António Domingues e
João Moniz Pereira, Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O'Neill e José
Augusto França no núcleo inicial do movimento, e ainda António Pedro. Muito
dados a uma ortodoxia rígida, as dissidências e as expulsões do grupo foram-se
sucedendo. Com uma oposição declarada ao regime do Estado Novo, as perseguições
aconteceram como seria de esperar.
Um grupo dissidente, “Os Surrealistas”,
passou a ser composto por Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Mário-Henrique
Leiria, António Maria Lisboa, H. Risques Pereira, Fernando José Francisco,
Pedro Oom, João Artur da Silva, Carlos Eurico da Costa, Fernando Alves dos
Santos e António Paulo Tomaz. O movimento não morreu e ainda hoje sobrevive na
obra de alguns nomes mais recentes, como Luís Pacheco, Victor Silva Tavares,
Eurico Gonçalves e alguns mais. Tive a sorte de conviver de perto com alguns
destes mais recentes, Victor Silva Tavares no Diário De Lisboa, no tempo da
Guidinha e depois no suplemento E Etc. do Jornal do Fundão,
com Luís Pacheco, nas noites boémias do Monte Carlo e noutros locais, com o
Eurico Gonçalves em almoços e jantares no Vavá, que ambos frequentávamos (e
continuamos a frequentar). O surrealismo não mais deixou, de uma maneira ou de
outra, de influenciar artistas de todas as áreas até ao presente. No cinema,
David Lynch, Alejandro Jodorowsky, David Cronenberg, Tim Burton são alguns bons
exemplos desta persistência.
Como já afirmei, Cocteau estava muito ligado
ao grupo de Paris e, ao mesmo tempo, afastado. Mas a sua poesia e o seu cinema
estão perfeitamente integrados no movimento, pelo apelo ao subconsciente, a uma
certa poesia mágica, ao tema do amor louco, ao fantástico, à inocência das
crianças. O seu “A Bela e o Monstro” é um bom exemplo deste universo
maravilhoso que reivindica a imaginação das crianças para se acreditar no que
se vê no ecrã.
O mito da bela e do monstro é algo que me
fascina desde sempre. Primeiramente, de uma forma inconsciente, depois como um
reflexo da luta interna entre as forças do Bem e do Mal, ambas coexistindo no
interior de cada ser. A educação e as noções de civilidade ajudam a
apontarem-nos o caminho do Bem e do convívio civilizado, com direitos e
deveres, com regras comuns. Mas as pulsões iniciais estão sempre presentes. Por
isso “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, e todas as sucessivas
adaptações cinematográficas (incluindo o delirante “As Noites Loucas do Dr.
Jerryll”, de Jerry Lewis, o fabuloso “O Testamento do Médico e do Monstro”, de
Renoir, ou o imprescindível “O Médico e o Monstro”, de Victor Fleming) são
particularmente sedutoras. Mas variações como “King Kong” são igualmente muito
curiosas, como certas obras fantásticas que multiplicam o efeito: “Drácula”,
“Frankenstein”, “Homem Lobo”, etc. De resto, mesmo “A Bela e o Monstro” teve
uma excelente versão em desenho animado, numa produção dos estúdios Walt
Disney.
O tema é-me de tal forma caro que eu próprio
tentei uma incursão com “A Bela e a Rosa”, filme incluído numa série
televisiva, para a RTP, intitulada “Histórias de Mulheres”. Partindo de um
conto tradicional português, esta versão coloca uma serpente no lugar do
“monstro” o que torna a intriga ainda mais erotizada, se possível fosse. Foi
esse diálogo entre o desejo refreado e a libido libertada que me seduziu
particularmente. No final, tanto a bela como o monstro entram numa vida normal,
depois de ultrapassados os traumas que os limitavam.
2. A BELA E O MONSTRO
Este
filme de Jean Cocteau, estreado em França no ano de 1946, pouco depois da libertação
de Paris da ocupação nazi, inicia-se com um pequeno texto que, mais palavra, menos
palavra, diz assim: “A criança, quando criança, caminhava de braços caídos,
queria que o ribeiro fosse um rio, este uma torrente a olhar o mar. A criança,
enquanto criança, não sabia que era criança e tudo para ela tinha alma e todas
as almas eram uma só. Não tinha opinião sobre nada e sentava-se de pernas
cruzadas e desatava a correr”.
Trata-se
de um poema de Peter Handke, também utilizado em “As Asas do Desejo”, que, em
alemão, para quem saiba e queira ter acesso ao original, reza assim: “Als das
Kind Kind war, ging es mit hängenden Armen, wollte der Bach sei ein Fluß, der
Fluß sei ein Strom, und diese Pfütze das Meer. Als das Kind Kind war, wußte es
nicht, daß es Kind war, alles war ihm beseelt, und alle Seelen waren eins. Als
das Kind Kind war, hatte es von nichts eine Meinung, hatte keine Gewohnheit,saß
oft im Schneidersitz, lief aus dem Stand …”
A criança acredita no mundo maravilhoso e fantástico
dos contos de fadas. Cocteau convidava os espectadores a voltarem a ser
crianças, ainda que pelo tempo da projecção de um filme. Ou seja, o que vem a
seguir não passa de um conto de fadas para adultos que se mantêm crianças, com
os olhos limpos de certezas e preconceitos, desapegados da realidade,
projectando-se no domínio dos sonhos. É assim “A Bela e o Monstro”, que parte
de uma história francesa de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, adaptada ao
cinema pelo próprio Jean Cocteau. Num momento em que a realidade social em
França era terrível, ainda a sair de um pesadelo, Cocteau lançava um apelo à
imaginação para que os espectadores acreditassem em tempos melhores,
ultrapassados os anos de chumbo. A Bela poderia converter o Monstro num
Príncipe Encantado e tudo poderia terminar num happy end. Não realista,
poético.
Numa qualquer aldeia, um velho negociante arruinado
tinha três filhas e um filho. Depois de uma viagem que correu mal, perdeu-se na
floresta, e vai dar a um castelo aparentemente abandonado, mas cheio de
surpresas invulgares, como longos corredores iluminados por candelabros que são
braços humanos, ou portas que se abrem e fecham sem interferência de ninguém, e
que descobre ser o domínio de um estranho ser, meio animal, meio homem, a que
passaremos a chamar o Monstro. Este ameaça prender ali o intruso, a menos que
ele parta e regresse três dias depois, ou que envie em seu lugar uma das suas
filhas. De volta à sua casa, o mercador conta as suas desditas, duas das filhas
arranjam desculpas para não irem, e a terceira, qual Gata Borralheira,
oferece-se para o supremo sacrifício. O cavalo branco que trouxera o pai, e que
sabe todos os caminhos, irá levá-la até ao castelo onde se encontra com o
Monstro. “Nada de mal te acontecerá”, garante-lhe. Mas o Monstro todas as
noites, às 7 horas, regressa durante o jantar de Bela para lhe colocar sempre a
mesma pergunta: “Queres casar comigo?”. A Bela diz que não, mas há no seu
olhar, no seu comportamento algo que se percebe ser um fascínio pela criatura,
que percebe ser boa, em quem descobre uma tristeza e solidão totais. Sente
piedade, é óbvio, mas uma piedade misturada com atração. Física e emocional.
Aqui tudo se torna ambíguo, como convém, e mais não
diremos. O que se pode acrescentar é que a imaginação visual de Cocteau é
magnifica. O aproveitamento do extraordinário castelo de la “Bête” é notável,
quer nos exteriores naturais e no emaranhado da floresta, como nos interiores,
todos eles manipulados pelo talento do poeta, que torna o espaço um terreno
“humano” e, simultaneamente, sobrenatural. Também na fotografia e na iluminação
o resultado é brilhante e a interpretação de Jean Marais, o grande amor da vida
de Cocteau, e um homem que o acompanhou até final, é invulgar, pela forma como
se movimento no interior de uma carapaça e como interpreta quase só com o
olhar, dado que grande parte do rosto está oculta pela máscara que diariamente
levava algumas horas a colocar na maquiagem e que obrigava o actor a andar todo
o dia com ela. A beleza e a elegância de Josette Day contribuem igualmente para
o resultado final desta verdadeira obra-prima do cinema fantástico e do
maravilhoso.
A BELA E O MONSTRO
Título original: La belle et la bête
Realização: Jean Cocteau e René Clément (não creditado) (França,
Luxemburgo, 1946); Argumento: Jean Cocteau, segundo história de Jeanne-Marie
Leprince de Beaumont; Produção: André Paulvé; Música: Georges Auric; Fotografia
(cor): Henri Alekan; Montagem: Claude Ibéria; Design de produção: Christian
Bérard, Lucien Carré; Decoração: Lucien Carré, René Moulaert; Guarda-roupa:
Antonio Castillo, Marcel Escoffier, Christian Bérard, Pierre Cardin;
Maquilhagem: Hagop Arakelian; Direcção de Produção: Émile Darbon, Roger
Rogelys; Som: Jacques Carrère, Jacques Lebreton, Rouzenat; Supervisão técnica:
René Clément; supervisão de argumento: Lucile Costa; Companhia de produção:
DisCina; Intérpretes: Jean Marais
(La Bête / O Principe / Endosso), Josette Day (Belle), Mila Parély (Félicie), Nane
Germon (Adélaïde), Michel Auclair (Ludovic), Raoul Marco, Marcel André, Claude
Autant-Lara, Noël Blin, Jean Cocteau (Voz do mágico), Christian Marquand,
Gilles Watteaux, etc. Duração: 96 minutos; Distribuição em Portugal:
inexistente; Distribuição DVD: Feel Films; Classificação etária: M/ 12 anos;
Data de estreia em Portugal: 17 de Maio de 1948.
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