All That Jazz

FILMES QUE EU AMO / sessão 2

1.  O MEU “ALL THAT JAZZ”


Ser conduzido por elevadores e corredores olhando o tecto amarelecido de um edifício quase desconhecido até então, que é, simultaneamente, perdição e salvação, desespero e esperança, é uma experiência radical. Algo que só se vive e se experimenta assim - em situação limite. Ninguém a pode interpretar de fora, ou se está dentro dela, ou não se está.
Acordar com uma dor indefinida no peito, opressiva, que se estende ao braço. Tomar as aspirinas que normalmente controlam idênticas dores de origem diversa, reumatismo, uma pontada, um desvio na coluna, perceber que tudo se mantém, que a dor não se esgota e não se afasta, o telefonema para o INEM, os primeiros cuidados, a máscara de oxigénio, a descida em cadeira de rodas, a sensação de impotência a instalar-se, o medo, sim o medo do que virá depois, do desconhecido, do que se não controla, e atravessar a esplanada do café que se frequenta todos os dias, nessa manhã quente de fim de Maio atulhada de amigos e conhecidos que nos olham estupefactos, sem uma palavra, entrar na ambulância que espera à esquina do prédio, descer avenidas e contornar praças com a sirene a abrir caminho por entre o trânsito opaco, e a perspectiva de vida que é já outra, olha-se o céu, os prédios, vemos as pessoas debruçadas sobre nós, não as olhamos de frente, depois a descida nas urgências do hospital, a inscrição, nome, morada, idade, cartão de cidadão existente, a triagem, a febre, a tensão arterial, a diabetes, os sintomas, a passagem pelo médico de serviço na urgência, uma negra que relembra a Queen Latifah (ainda me restam vestígios da realidade para recordar) e a seguir os exames, o sangue para análises, o electrocardiograma, a radiografia, o comprimido debaixo da língua, a espera, a esperança de que não passe tudo de um novo ataque violento de coluna ou reumatismo, as horas que passam, a descida até ao bar para comer qualquer coisa, beber água, fresca, olhar a esplanada em frente, regressar à sala de espera, a angústia que sobe de tom, finalmente o nosso nome ouvido no altifalante, o regresso ao gabinete nº 2, onde antes me encontrara com a médica de urgência, onde agora se encontra um jovem que olha para mim e para os resultados que lhe aparecem no ecrã do computador, e não tem dúvidas, telefona para alguém, questiona e volta-se para mim, “tem de ficar, há aqui sinal de algo muito suspeito, fica no SO, em observação”.
Curta jornada em direcção a um cubículo que parece uma arrecadação, onde me pedem para despir a roupa civil, que enfiam em sacos de plástico brancos, e me convidam a vestir uma farda azulada que encaixa pela frente e não abotoa atrás. Indicam-me o movimento seguinte: deitar na marquesa que subitamente apareceu, colocam-me um lençol por cima, e inicio a primeira viagem pelos corredores do hospital, rumo ao SO (“Que quer dizer SO, enfermeira Carla?”, “Serviço de Observação”, “Julgava que devia ser SU, Serviço de Urgência”, “Esse também existe.”). Aqui relembro “All That Jazz”. O ritmo é muito semelhante. Falta a música. E não sou Roy Scheider. Não se trata de ficção, mas de realidade que retoma a ficção. Será que os filmes me acompanham até ao fim?
Mal a marquesa ingressa na zona do SO, a actividade galopa. Ainda me “arrumam” no local predefinido, e já me colocam soro, depois de me abrirem as veias nos dois braços. Repetem-se as análises de sangue, sinto agulhas de vários tipos e espessuras, umas que atravessam veias, outras que procuram tecidos da barriga, algumas que fazem jorrar gotas de sangue na polpa dos dedos. Andava a ler “Sangue Fresco”, onde os novos vampiros se alimentam de sangue artificial. Aqui é o meu sangue que vejo seguir em seringas rumo a análises várias. Os resultados continuam a não ser nem os melhores, nem os mais preocupantes, mas médicos de urgência e enfermeiros (bom casting, merecedor de um “Serviço de Urgência” ou de uma “Anatomia de Grey”!) não param de me vigiar. Uma simpática médica brasileira vai controlando o electrocardiograma, que agora é contínuo. Chega uma médica de bata verde, que me faz um ecocardiograma. Sinto a gelatina no peito e o aparelho a percorrer as costelas, em busca de batimentos. É a cardiologista de serviço, e tenho a certeza de ter caído em boas mãos. Contra o que ouço dizer, e contra os meus mais temíveis receios, todos parecem competentes e rigorosos (digo parecem porque não tenho as competências para afirmar a conclusão) e, sobretudo, de uma irradiante simpatia, o que não é factor de somenos para quem de repente se vê isolado e transplantado para um ambiente hostil por sistema – um hospital nunca é um local bem-vindo, por muito que, depois, lhe possamos dever a vida. Mas por muito que se possa agradecer depois, a verdade é que estamos paralisados de pânico no SO. Paralisados de solidão interna. Sinto-me irremediavelmente só.
Há um balcão redondo no centro do SO, rodeado por um corredor amplo. Distribuídos à volta, em nichos que relembram casulos, algumas dezenas de vítimas que esperam o resultado da observação, para saberem qual o seu destino. No interior do balcão a azáfama é intensa, médicos conversam sobre doentes, enquanto controlam pelos ecrãs os dados que continuamente vão chegando. A esta hora Barcelona e Manchester discutem quem é o campeão da Europa. Não vou ver. Não terei alta a tempo, penso, enquanto vejo as equipas entrar em campo, lá ao longe, numa televisão presa da parede, sem som. Pedi para gravarem o jogo. Quando o irei ver? Há mesmo uma insidiosa dúvida: será que o verei, apesar de estar gravado? As notícias do jogo não me irão chegar senão noite dentro, mas chega-me a notícia de que os vários exames confirmam “alguma coisa”, um enfarte de miocárdio quase de certeza, e o internamento. Quem mo explica é um médico, de curta barba grisalha, que presumo ser chefe de serviço. O casting continua a ser impecável e a simpatia também.
Antes de jantar, com o jogo a decorrer, sou enviado para os serviços de cardiologia, piso 8, cama 1. Vou rodeado de suportes de soro, que prolongam as minhas veias para o céu. No peito vários discos ligados a mais fios. Pelos corredores só vejo tectos e luzes. Uma nova perspectiva de existência. Deixo o SO, mas continuo só. As imagens de “All That Jazz” não me largam. Refazer os planos da obra de Bob Fosse mas agora no real. Ou será que real era o filme que prenunciou esta minha viagem? Relembro ainda Nova Iorque e uma noite a assistir a “Dancing”, num teatro perto de Time Square, uma encenação sua, onde era visível todo o nervo e talento deste homem do espetáculo.

2. ALL THAT JAZZ: O ESPECTÁCULO VAI COMEÇAR (1979)


Bob Fosse foi, indubitavelmente, um dos últimos grandes homens do espectáculo norte-americano, quer como bailarino, coreógrafo, encenador de teatro ou realizador de cinema. Autor de "musicais" que todos recordamos, como “Sweet Charity”, “Cabaret” ou “All That Jazz”, teve o condão de inovar num género que, dir-se-ia, não se adequar muito bem aos novos temas dramáticos por si propostos (a prostituição, o nazismo e a morte, respectivamente).
Curiosamente, pode dizer-se que Bob Fosse fez da vida e do seu destino, por vezes trágico, espectáculos musicais, cheios de som e de luz, de alegria e de esperança. Fez, por exemplo, da sua própria vida e da sua própria "morte anunciada" um espectáculo fabuloso em “All That Jazz”.  Por outro lado, abordou o mundo feérico do espectáculo sob uma aparência dramática nos seus dois únicos filmes não totalmente musicais (“Lenny” e “Star 80”). De todas as formas, o espectáculo, no palco e no écran, esteve presente em todos os momentos da sua existência, literalmente consagrada, devotada, ou melhor ainda, doada ao "show business".
Nascido em Nova lorque, a 23 de Junho de 1926, viria a falecer em Washington, a 23 de Setembro de 1987. Filho de um actor de variedades, desde muito novo acompanhou o pai em "tourneés". Em 1945, junta-se a uma dançarina e monta com ela um espectáculo que dará a volta aos EUA. Em 1949, estreia-se na Broadway na revista “Dance Me a Song” e casa pela primeira vez com Joan McCracken, mais uma bailarina. No cinema, aparece em três "musicais" da MGM, “Give a Girl a Break”, de Stanley Donen (1953), “The Affairs of Dobie Gillis”, de Don Weis (l953) e “Kiss Me Kate”, de George Sidney (i953). Depois, coreografa e interpreta “My Sister Eileen”, de Richard Quine (1955) para a Columbia e “The Pajama Game”, de Stanley Donen (1957) e “Damn Yankees”, de George Abbott e Stanley Donen (1958), ambos para a Warner. Gwen Verdon, a protagonista desta comédia musical, será a sua terceira mulher.
Entretanto, entre 1953 e 1986, Bob Fosse vai cimentando o seu êxito na Broadway, com sucessivos musicais que atingem números de representações raros, entre as mil e as duas mil sessões: “Bells are Ringing”, “New Girl in Town”, “Redhead”, “Pal Joey”, “How to Succeed in Business Without Really Trying”, “Little Me”, “l've Got Your Number”, “Swett Charity”, “Pippin”, “Chicago”, “Dancin” ou “Big Deal”. Estes e outros títulos valeram a Bob Fosse vários Emmys e Tonys, prémios que são o equivalente aos Oscars para o teatro e a televisão.
A partir de 1969, Bob Fosse passa à realização cinematográfica, assinando somente cinco títulos que denunciam, todavia, de forma clara o seu enorme talento: “Sweet Charity” (1969) , “Cabaret” (1972), “Lenny” (1974), “All That Jazz” (1979) e “Star 80” (1983). Em 1974, colabora duplamente num filme de Stanley Donen, “The Little Prince”, obra totalmente falhada onde apenas se salvam uma curta aparição de Bob Fosse como "serpente" e alguns “números” por si coreografados. “Cabaret” deu ao seu autor um Oscar, “Lenny” uma nomeação, “All That Jazz” nove nomeações e quatro estatuetas douradas.
Nos derradeiros anos da sua vida, que ele de certa forma prefigurou em “All That Jazz”, teve diversos ataques cardíacos que, no entanto, não o impediam de continuar a encenar teatro, dirigir televisão e aparecer mesmo, pessoalmente, num ou noutro apontamento. Morreu, tal como o personagem interpretado por Roy Scheider, de ataque cardíaco, quando ultimava os ensaios de um novo espectáculo de teatro e organizava a montagem de um "show" televisivo. Na vida, como no palco ou no écran, Bob Fosse foi até ao sacrifício final de uma coerência e fidelidade totais.
Um homem que vive intensamente o dia-a-dia, que se desdobra recriando espectáculos (no teatro, no cinema, na televisão), descobre que tem a morte próxima e faz desta evidência o seu último espectáculo.  “All That Jazz” é um filme com muito de autobiográfico da parte do seu autor, Bob Fosse, que para interpretar o principal papel deste “musical da crueldade” vai buscar um actor que se lhe assemelha fisicamente, o extraordinário Roy Scheider, retocando-o no necessário para que as parecenças sejam ainda maiores.
No ano de 1972, Bob Fosse consegue um feito dificilmente repetível: com “Cabaret” ganha o Oscar para a melhor realização cinematográfica; com o musical “Pippin” alcança dois Tony, e com o espectáculo televisivo “Liza With a Z” consegue um Emy. Os três prémios máximos do ano, nas respectivas categorias, para o mesmo criador. Uma actividade febril, publicamente recompensada, é certo, mas que colocou o autor à beira da morte: várias crises cardíacas ensombraram-lhe o triunfo, mas ofereceram-lhe matéria para uma nova obra. Esse convívio directo com a morte, enquanto no palco se estabelecem as marcações do próximo show e no “plateau” e na sala de montagem se estrutura um novo filme, será a base deste “All That Jazz”, confronto arrogante, desafio provocatório à morte.
Não deixa de ser surpreendente e arrojada a concepção deste musical que faz da morte personagem. Bob Fosse, queimando-se entre mulheres mal-amadas, fumo e bebidas, aguentando-se à tona da vida com cafés e comprimidos, pautando a existência pelo compasso de uma banda sonora bem batida, com apetência pelo excesso e total sofreguidão, é o protagonista desta desencantada confissão, onde a sinceridade e a ironia se misturam na hora da verdade.
Sabido como é que o musical americano é um espectáculo onde predomina a alegria, onde os momentos de comédia continuamente se sucedem, paradoxal parecerá que um cineasta transponha a morte para a cena e coreografe o seu próprio fim, oferecendo-o em espectáculo.  Não será já tão estranha a ideia se essa apoteose final encerrar indícios de uma vitalidade indomável, de um apaixonado apego à vida, afirmando-se como ode gratificante ao prazer de viver e de adiar o fatídico encontro. Quando tiver de ser, que seja, mas que o seja em grande, em beleza, com o som e a fúria indispensáveis - que saiba morrer quem soube viver.
Na banda sonora de “All That Jazz” surgem vários temas orquestrados e dirigidos pelo compositor e maestro Ralph Burns, com vozes de George Benson, Sandahl Bergamn, Ben Vereen e do próprio Roy Scheider, na figura de Joe Gideon / Bob Fosse, que aqui compõe um dos seus melhores papéis, afirmando-se, não só como actor, mas também como cantor-bailarino.


ALL THAT JAZZ: O ESPECTÁCULO VAI COMEÇAR
Título original: All That Jazz

Realização: Bob Fosse (EUA, 1979); Argumento: Robert Alan Aurthur, Bob Fosse; Produção: Robert Alan Aurthur, Wolfgang Glattes, Daniel Melnick, Kenneth Utt; Música: Ralph Burns; Fotografia (cor): Giuseppe Rotunno; Montagem: Alan Heim; Coreografia: Bob Fosse; Casting: Howard Feuer, Jeremy Ritzer; Design de produção: Philip Rosenberg; Decoração: Gary J. Brink, Edward Stewart; Guarda-roupa: Albert Wolsky; Maquilhagem: Fern Buchner, Romaine Greene, Jay Cannistraci; Direcção de Produção: Kenneth Utt; Assistentes de realização: Janet E. Fishman, Wolfgang Glattes, Joseph Ray; Departamento de arte: Eugene Powell, Carlos Quiles, Jimmy Raitt, Tony Walton, Walter Way, Joe Williams Sr., Richard Shelton; Som: Stan Bochner, Jay Dranch, Bernard Hajdenberg, Peter Ilardi, Christopher Newman, Sanford Rackow, Maurice Schell; Companhias de produção: Columbia Pictures Corporation, Twentieth Century Fox Film Corporation; Intérpretes: Roy Scheider (Joe Gideon), Jessica Lange (Angelique), Leland Palmer (/Audrey Paris), Ann Reinking (Kate Jagger), Cliff Gorman (Davis Newman), Ben Vereen (O'Connor Flood), Erzsebet Foldi (Michelle), Michael Tolan (Dr. Ballinger), Max Wright (Joshua Penn), William LeMassena (Jonesy Hecht), Irene Kane (Leslie Perry), Deborah Geffner (Victoria), Kathryn Doby (Kathryn), Anthony  (Paul Dann), Robert Hitt, David Margulies, Susan Brooks, Keith Gordon, Frankie Man, Alan Heim, John Lithgow, Sndahl Bergman, Eileen Casey, Bruce Anthony  Davis, Gary Flannery, Jennifer Nairn-Smith, Danny Ruvolo, Leland Schwantes, John Sowinski, Candace Tovar, Rima Vetter, Trudy Carson, Mary Sue Finnerty, Lesley Kingley, P.J. Mann, Cathy Rice, Sonja Stuart, Terri Treas, Ralph E. Berntsen, Jan Flato, John Paul Fetta, Andy Schwartz, Robert Levine, Phil Friedman, Stephen Strimpell, Leonard Drum, Eugene Troobnick, Jules Fisher, Ben Masters, etc. Duração: 123 minutos; Distribuição em Portugal (Bluray): Feel Films; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 19 de Setembro de 1980. 

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