Americain Graffiti

FILMES QUE EU AMO / sessão 4
1.     OS MEUS “AMERICAIN GRAFFITI”

Em 1980, “Manhã Submersa” foi o filme seleccionado pelo então IPC, Instituto Português de Cinema, para representar Portugal na cerimónia da atribuição dos Oscars. Fora considerado por alguma crítica e pela revista “Nova Gente” como o “melhor filme do ano”, Eunice recebera o prémio de melhor actriz, eu o de melhor realizador, o filme estreara em Cannes, na Quinzena dos Realizadores, com enorme sucesso, de público e de crítica, e depois passara já por algumas dezenas de festivais, onde obtivera sempre algum reconhecimento. Ante estreara em Portugal, no Festival da Figueira da Foz, onde ganhara o prémio CIDALC, fora recebido muito bem na sua estreia em salas comerciais (Quarteto, Cinebolso, em Lisboa, e Charlot, no Porto), numa estreia que contabilizou mais de 80.000 espectadores (depois de a série televisiva ter sido exibida na RTP, o que poderia ter subtraído muitos espectadores ao cinema).
Estar entre os cerca de quarenta filmes de todo o mundo que disputavam esse ano a nomeação para o Óscar de “melhor filme de língua não inglesa” era para mim já uma vitória. Nunca tive grandes esperanças de sequer ser nomeado, tendo em conta, logo à partida, a falta de competitividade da nossa cinematografia ao lado de muitas das outras (não discutindo sequer a qualidade do filme). E assim foi. Sem surpresas, assisti à nomeação de cinco filmes, “Kagemusha”, de Akira Kusosawa (Japão), “O Último Metro”, de FrançoisTruffaut (França), “Confidencia”, de István Szabó (Hungria), “O Ninho”, de Jaime de Armiñán (Espanha) e “Moscovo não acredita em Lágrimas”, de Vladimir Menshov (URSS), alguns dos quais só vim a ver tempos depois.
Entretanto, passaram-se alguns dias, e parti para Los Angeles com o filme pois, entretanto, este fora convidado a estar presente no Festival. A projecção de “Manhã Submersa” no Filmex, Festival Internacional de Los Angeles, então na sua décima edição, levou-me alguns dias até à América. Já no avião, a caminho da Nova Iorque, dou comigo a pensar num conjunto de circunstâncias que, para mim surpreendentemente, rodeou a minha estreia na longa-metragem: para lá de tudo o mais que se possa dizer do filme, levou-me como realizador a dois locais míticos da cinematografia mundial - Cannes e Hollywood. “Tenho de me sentir satisfeito, pensei, e reconhecer que dificilmente, à primeira tentativa, poderia esperar mais e melhor, nascido no interior de uma cinematografia marginal às grandes decisões, e quase desconhecida das plateias mundiais.”
No caso do Festival de Los Angeles, “Manhã Submersa” (“Morning Mist”, na sua tradução inglesa) foi o primeiro filme português a ser convidado para este certame, que os organizadores apresentavam como o maior do mundo, tanto em obras seleccionadas (não tinha mercado de filmes, só exibia o que seleccionava oficialmente), como em número de espectadores (nessa altura mais de 100.000, durante três semanas – precisamente entre 2 e 23 de Abril -, em várias salas de Hollywood). Mas, na edição de 1981 do Filmex, a cinematografia portuguesa estaria ainda representada por um outro título, “Amor de Perdição”, de Manuel de Oliveira.
Assim parti para Los Angeles, a cidade mítica do cinema, pelo menos para 80% dos cinéfilos mundiais. Sair de Lisboa às 14.30 horas e chegar a Los Angeles às 20.50 do mesmo dia, depois de andar no ar cerca de 12 horas, e de esperar em terra três é obra. E então em jet-lag nem queiram saber.  
No aeroporto de Los Angeles, uma “voluntária” do festival espera-me de cartão na mão com o meu nome e a indicação de pertencer ao Filmex. Para reconhecimento recíproco. Leva-me ao hotel que a organização marcou e, pelo caminho, vou descobrindo, primeiro um amontoado de armazéns dos arredores incaracterísticos de uma cidade sem história, depois uma metrópole estranha, invulgarmente diferente de tudo quanto conhecia na Europa, estendendo-se na horizontal, por milhares de quilómetros, carregada de referências que o cinema há trinta e tal anos me vincava na memória. O hotel é em Sunset Boulevard. Escusado será dizer que procuro (em vão) traços de Gloria Swanson e do seu imperturbável mordomo, que o rosto de Erich Von Stroheim imortalizou. Não só eles não aparecem, como são raros os vestígios desse tempo, ainda que William Holden e Billy Wilder ali tenham regressado depois, à procura do tempo perdido e de “Fedora”. Mas o suave aroma do mito, esse lá está. É irresistível.
Numa América que convencionalmente conhecemos pelos seus arranha-céus, Los Angeles é uma cidade que sai desse mapa. Avenidas que chegam a ter mais de 50 quilómetros, larguíssimas, moradias de não mais de dois andares, refugiadas atrás de pequenos jardins, o cimento por todo o lado, os desperdícios e o lixo, as luzes a incendiarem a imaginação. É conveniente não esquecer que estamos em 1981. A globalização era algo que se não imaginava ainda, tal como hoje a conhecemos. As distâncias eram uma realidade e as diferenças do modo de vida surpreendiam ainda. No conjunto, a primeira impressão é de uma certa hostilidade. Venho na perseguição de um sonho que a “fábrica” põe a circular há 80 anos e não encontro nada disso. É sempre desconfortante confirmar o que já se sabia, mas se julgava possível continuar a ignorar. Hollywood é aqui nome de “boulevard” e letras brancas a recortarem-se na encosta de uma colina. Tudo o resto vive somente na nossa imaginação. Os pés e as mãos das estrelas embutidos no cimento da entrada do Chinese Theatre são bicadas de um pássaro que ninguém consegue agarrar. E, no entanto, à medida que os dias irão passando, há qualquer coisa no ar que me vai habituando à cidade, que me atrai, que lentamente me fascina e me prende. Irremediavelmente.
Entrar no Chinese Theatre, o mais mítico cinema de todo o mundo, e ali assistir à estreia de “Excalibur”, de John Boorman, com um ecrã monumental, uma qualidade de imagem e de som nunca sequer pressentidos nas salas portuguesas, é uma experiência única. À saída, andar alguns quilómetros em passeios atapetados por estrelas onde se encontram os nomes (e as mãos eternizadas no cimento) de todos os grandes actores e actrizes que povoam a nossa memória e aquecem os nossos sonhos desde criança, é algo que eleva até ao sufoco. Foi aqui que se filmou uma sequência célebre de “Serenata à Chuva”, lembram-se? Imaginamos as bancadas, as teenagers, os gritinhos, Gene Kelly. Mas quantas estreias mundiais, quantas entregas de Oscars, quanto da história do cinema e da história do mundo. 
O “Grauman's Chinese Theatre” vem dos anos 20, julgo 1927, e foi a concretização de um sonho de um dos grandes homens do espectáculo dos EUA, Sid Grauman. Em 1958, foi ampliado, tornando-se mais confortável, mais amplo e melhor dotado de equipamento técnico, de imagem e som. Em Setembro de 2001, fechou para obras de recuperação e reabriu para os “Academy Awards” de 2004, depois de ali se terem gasto sete milhões de dólares em melhoramentos de vária ordem. Dizem que está um brinquinho. Por mim, fico-me pela memória de 80. 


O Hyatt on Sunset Hotel fica na parte alta da cidade. É um dos raros edifícios com mais de dois ou três andares. O meu quarto é no décimo primeiro andar, virado para a cidade. Esta estende-se até ao horizonte, para onde quer que me volte, juncada de pontos luminosos. As avenidas principais são fileiras compactas de luzes. Mesmo por debaixo da varanda, um anúncio enorme ao último filme de Jerry Lewis, que acabava de se estrear nos EUA: “Hardly Workíng”. Na Europa, Jerry era considerado um génio, na América, pouco menos que um palhaço.
Estamos em 1981. Voltamos a sublinhar. Em Portugal havia dois canais de televisão. Sento-me aos pés da cama, uma cama com mais de dois metros de largura, e acendo o televisor, com capacidade para mais de oitenta canais, apanhando nessa noite a funcionar mais de quarenta, com treze emissores principais, onde se sucedem os filmes, as séries, os concursos, os anúncios, as “news”. Em Hollywood são onze horas da noite. Em Lisboa, porém, são já oito da manhã seguinte. Sobrevivo ainda pela hora de Lisboa, e toda a possível magia do local e o ineditismo da situação não impedem o cansaço de avançar. Adormeço. Em Hollywood.
É difícil apercebermo-nos, à primeira, da configuração da cidade que se conhece por Los Angeles. Esta não é apenas “uma cidade”. É um espaço sem fim que reúne várias cidades. Uma avenida como a Wilshire vai atravessando diversos distritos (ou cidades), corno Downtown, Beverly Hills, Hollywood, Westwood, até ir morrer na praia de Santa Mónica, São, ao que recordo, mais de setenta quilómetros de avenida. Todos estes nomes (e muitos outros) correspondem a pequenas cidades que cresceram e se encontraram, misturando num mesmo tecido as suas veias. Hoje em dia, Los Angeles, com quase cerca de três milhões de habitantes, refere um espaço de metrópole que, em superfície ocupada, é o maior do mundo. Assente sobre uma crosta de forte actividade sísmica, os prédios não crescem na vertical, como em Nova Iorque, por exemplo, mas estendem-se na horizontal. Percebe-se que, apesar de ser uma zona caríssima, onde existem as ruas mais valiosas de todo o mundo, não há falta de terreno, que ninguém economiza.
Tudo isto transfigura por completo a fisionomia da cidade, multiplicando as distâncias de forma inacreditável. Já me tinham avisado, ainda em Lisboa, que em Los Angeles quase não se podia andar a pé. Tudo fica longíssimo. Acredito, no entanto, que não há melhor processo de conhecer uma cidade do que percorrê-la a pé, um pouco à deriva. Quis fazer a experiência na primeira manhã passada em Los Angeles. Munido de um pequeno mapa que o Festival facultava aos convidados, com a indicação da localização dos diversos cinemas e hotéis onde se centralizavam pessoas e actos do certame, saí do hotel, em Sunset Boulevard em demanda do Fairfax Theatre, onde, no dia seguinte, iria passar a “Manhã Submersa”. O mapa era de fácil leitura. As ruas e avenidas estendiam-se direitas, cruzando-se numa textura rectilínea. Descia-se Sunset Boulevard até ao cruzamento com a Fairfax, tomava-se por esta abaixo e logo surgiria o cinema. Deixei o hotel por volta das oito e meia da manhã, cerca do meio-dia não tinha avistado ainda o cinema e, como combinara um almoço com a representante do Centro de Turismo de Portugal, telefonei-lhe para casa em busca de auxílio. O cinema escondia-se dois quarteirões abaixo (percorrer cada quarteirão levava cerca de dez minutos), mas descobri então que em Los Angeles não se anda mesmo a pé. Por isso as ruas permanecem quase sem peões, enquanto, nas faixas de rodagem, se atropelam os automóveis e carrinhas de toda a espécie e feitio, mas sempre de largas dimensões.
No hotel, quando fizemos o check-in, um empregado da recepção entregara-me uma nota assinada por Warren Beatty e Buck Henry, que pedia para os procurar no secretariado do Festival logo que eu pudesse. Foi, claro, a primeira coisa que fiz. Falei com Buck Henry, nessa altura muito conhecido como argumentista e actor, nomeadamente de filmes de Warren Beatty, que me explicou o porquê da missiva: queria explicar-me algo de estranho que acontecera durante as votações para a eleição dos nomeados para o Óscar de “Melhor Filme de Língua Estrangeira”. Relatou-me então as peripécias e os arranjos políticos que estiveram na base do afastamento de “Manhã Submersa”, de que ambos gostavam muito e defenderam até final. Numa primeira votação, três filmes tinham tido votos que os destacavam dos outros: Kurosawa, Truffaut e Szabo. Depois, para dois lugares, surgiram três filmes com o mesmo número de votos, um espanhol, um soviético e o português. Fizeram-se tantas votações, quantas as necessárias para que o filme português ficasse de fora. E assim um filme português não foi nomeado em 1981. Registei a explicação e as palavras de apreço.
Quem recordar a noite americana atravessada pelo rolar constante dos automóveis de “American Grafitti” (belíssimo filme de início de carreira de George Lucas) descobrirá rapidamente o porquê de certas atitudes. Em Los Angeles não se passeia a pé. Faz-se tudo de automóvel. Nas noites de sexta e sábado, sobretudo, os grandes “boulevards” enchem-se de uma multidão de limusinas com os seus ocupantes trocando conversas de janela para janela, enquanto os rádios e gravadores gritam para o exterior as últimas novidades musicais. O clima primaveril, a noite pervertida por uma iluminação explosiva, o rolar dos carros, eis o fascínio a que dificilmente nos poderemos furtar, enquanto demoradamente descemos Hollywood Boulevard. O que parece que não devemos fazer: andar à noite sozinhos pelas grandes avenidas. A princípio, andávamos para descobrir e sentir a cidade, tínhamos acabado de assistir a “Camelot”, no Pantage Theatre, e gostávamos de apanhar o ar fresco no rosto e ver a cidade. Mas começámos a perceber que éramos os únicos a andar nos passeios. Ou quase os únicos. Quem se cruzava connosco não tinha muito bom aspecto, é verdade. Mas, que diabo!, tínhamos acabado de ver Richard Harris estrear a reposição de “Camelot” (Richard Burton adoecera dias antes e cedera o lugar ao colega que protagonizara o filme de Joshua Logan), tínhamo-lo cumprimentado à saída da porta dos artistas (que não era uma porta, mas o largo e blindado portão de um garagem, de onde saíra num carro, que parara à nossa frente, nossa, dos fãs que o aguardavam!), para cumprimentar e dar autógrafos, com a maior simpatia. Tínhamos estado num dos mais celebrados teatros do mundo, e certamente um dos mais luxuosos e mais bonitos.
O “The Pantages”, em Hollywood Boulevard, inaugurara-se nas loucas e frenéticas noites de 1930, numa estrutura Art Deco absolutamente deslumbrante. Em 1981, ainda estava muito bem, parece que depois decaiu um pouco e obrigou a obras em 2000, reabrindo em Setembro, depois de dez milhões de dólares de obras de restauro, levadas a cabo sob a direcção do designer Roger Morgan e da empresa nova-iorquina Evergreene Studios, Restituído à sua glória anterior, o “The Pantages” estreara a versão teatral de “The Lion King”, da Disney.
Terra de contrastes súbitos, logo descobrimos a violência que se escondia: carros da polícia, de sirenes despertas, aparecem por aqui e por ali. Por vezes param, despejam agentes fardados de negro, cobertos de símbolos metálicos e de pesado armamento. São figuras que atemorizam facilmente, ainda que se mostrem prestáveis, quando abordados. Ou mesmo quando nos abordam, a perguntar o que fazemos por ali, enquanto revistam dois negros, de mãos encostadas ao carro patrulha e pernas bem abertas. Percebem que somos um casal de turistas, aconselham a não andar por ali a estas horas da noite (pouco passa da meia noite), dizemos que esperamos um táxi, mas não há táxis a não ser às portas dos hotéis, explicam. Depois de esperarmos um pouco sem resultados visíveis e, na eminência de continuarmos ali à espera de táxi até de madrugada, somos conduzidos, no carro da polícia, à porta do Hyatt Sunset Hotel. Entrada triunfal para novatos nestes percursos. Se a aparência era aterradora, o comportamento dos agentes foi exemplar de amabilidade.
Já o mesmo, porém, não poderão dizer os jovens que em fila aguardam a entrada para a sessão da meia-noite (“the late show”) do Tifannys onde, há seis anos consecutivos, se exibia “The Rocky Horror Picture Show”. A chegada dos carros-patrulha põe em silêncio esse caudal de fiéis que vão para o cinema sob a aparência das personagens da ópera rock. Encostados à parede, um a um, são revistados pelos guardas, certamente em busca de armas ou droga. Sente-se que a violência está latente, compreendo então porque toda gente me aconselhava calma durante os passeios e me prevenia contra o perigo que existe nas ruas.
Vira “The Rocky Horror Picture Show” em Londres, anos antes, voltei a repetir a visita, não a experiência, pois esta em terras americanas é única. Em cada meia-noite de cada sábado, centenas de fieis deslocam-se a salas de cinema onde esteja em cena esta “opera rock”, vestidos com os trajes dos seus personagens favoritos, e acompanham a visão do filme com canções, diálogos, expressões, alguns arrastam grilhetas, outros trazem adereços semelhantes ao que se vão vendo no ecrã. “Happening” chama-se a este fenómeno, que trinta anos depois continua. Agora, ao que sei, a coqueluche chama-se “The Nuart Theatre”, um cinema de arte e ensaio, renovado em 2006, situado no nº 11272, em Santa Monica Blvd, Los Angeles.
Sábado de Páscoa, onze da manhã, no Fairfax Theatre, vai finalmente ser projectada a “Manhã Submersa”. O cinema tem capacidade para mais de mil espectadores, a sala está meia, dez minutos antes do início da projecção, depois fica muito mais composta, a organização diz-me que é um êxito, em virtude do dia, da hora, do facto de ser um filme português. O anúncio do filme era bastante simpático: “Estreia americana. Primeiro filme de Lauro António, comparável a “Padre Padrone” na sua elegância e poder lírico. Considerado por alguns críticos europeus como o melhor filme a sair de Portugal depois da revolução de 1974, é o drama de um rapaz pobre que amadurece num seminário religioso. Filme oficialmente seleccionado pela Academia para a categoria de “Melhor Filme de Língua Estrangeira.”
Nada a dizer da projecção, da legendagem, da tradução. O público acompanhou o filme excelentemente, dispensando-lhe uma generosa salva de palmas no final, e ficou ainda em bom número para o colóquio que se seguiu. A Fátima Morbey, do Centro de Turismo de Portugal, igualmente entusiasta de cinema, ajudou-me com o seu excelente inglês e toda a sua boa vontade. Curiosidade a reter: um colóquio bem diferente dos que ocorriam em Portugal, por essa altura, onde o significado do filme e a ideologia ocupam lugar preponderante. Em Los Angeles, nem uma única pergunta nesse sentido sendo, no entanto, de notar que todas as outras pressupunham que o filme tinha sido correctamente entendido. Mas o que preocupou os assistentes foi essencialmente factos: quem fez, como, quanto custou, quanto demorou, como foi dirigido, etc. Também o cinema português, no seu conjunto foi abordado, o que voltaria a acontecer de forma exaustiva, nalgumas entrevistas que órgãos de comunicação me solicitaram.
Este foi um sábado bem português em Los Angeles, onde quase não existe comunidade, apenas alguns emigrantes que se podem considerar integrados. Mas, ainda no hotel, enquanto me vestia, logo pela manhã, um dos canais da TV, trouxe-me a imagem de Humberto Madeira, em “Lisboa”, um velho filme com Ray Milland. À tarde, a organização do festival e um grupo de portugueses, ofereceram uma recepção em honra da representação portuguesa no Filmex. Numa das colinas de Hollywood, em casa de um dos produtores de “Roots”, casado com uma portuguesa, ali se conversou sobre Portugal e o seu cinema. Ficou no ar a realização de uma semana do mais moderno cinema português em Hollywood. Pensei na altura: “Vamos a ver se se consegue concretizar a ideia. Seria extremamente importante para o nosso cinema penetrar na América, e as portas começavam a abrir-se. Lentamente, e de forma desconfiada, mas é sempre de aproveitar.” Não se fez muito nesse sentido.
Por outro lado, não deixa de ser comovente descobrir que portugueses que viviam a 60, 80, 100 (ou 600!) quilómetros de Hollywood compareceram no Fairfex Theatre para ver um filme português, que de algum modo lhes atenuaria (ou multiplicaria?) as saudades da terra. Alguns, por terem chegado atrasados uns minutos, viram-se impedidos de entrar, mesmo tendo já os bilhetes comprados de véspera: nas sessões do festival ninguém entrava depois de iniciada a sessão Uma regra. No cinema, tal como no teatro ou na ópera.
No dia seguinte, domingo, de novo pelas onze horas da manhã, na “Preview House”, projectou-se o filme de Manuel do Oliveira, “Amor de Perdição”, igualmente bem defendido pelo festival, que o anunciava nestes termos: “Este notavelmente original e audacioso filme épico de quatro horas e meia, assinado por Manuel de Oliveira, chefe de fila do cinema português, é um complexo, altamente estilizado e colorido ritual de amor, morte e liberdade que gira em volta dos amores contrariados por grupos de famílias antagónicas”.
A Preview House é uma sala de reduzidas dimensões (pouco mais de 200 lugares) mas todos eles estão munidos, num dos braços da poltrona, de um aparelho de comando manual que permite a cada espectador ir controlando a sua impressão do filme, e testemunhando-a a cada passo. Desde o “muito interessante” até ao “muito aborrecido”, o espectador tem várias opções que vai denunciando através do movimento de um ponteiro. É em salas destas que se testam os filmes americanos, antes de serem lançados no mercado, frente a grupos de espectadores representativos de várias origens etárias e extractos sociais. É evidente que durante a projecção do filme de Manuel de Oliveira este mecanismo esteve desligado. Não era caso de testar o filme. A sala era uma das várias em que decorreu o certame, e fora alugada para o efeito. Não tendo muito público (as quatro horas e meia afugentaram alguns, segundo percebi), o que estava foi acompanhando a obra com atenção e, no seu conjunto, parece-me que o cinema português terá saído prestigiado nesta sua passagem por Hollywood, no contexto de um festival particularmente exigente, como parece ter sido este Filmex 81.
Numa dessas noites passadas em Los Angeles, jantámos uma opulenta e variada salada na varanda do nosso quarto, virada para a cidade, no décimo primeiro andar do Hyatt on Sunset Hotel. O vinho era branco, gelado. A vista soberba. O tempo cálido. A baixela era parecia de prata, mas o empregado em nada se assemelhava a um aristocrata falido, perdidamente apaixonado por uma velha actriz do cinema mudo. Por debaixo da varanda, escrito em letras brancas no asfalto da avenida, X ing. “Crossing”, descobrimos depois. Cecil B. de Mille poderia anunciar “Acção!”. Estes foram, em relação a Los Angeles”, os meus “American Graffiti”.

2.  AMERICAN GRAFFITI – NOVA GERAÇÃO


Após o seu primeiro filme de fundo, “THX 1138”, George Lucas encontra-se inactivo durante dois ou três anos, dado o relativo insucesso comercial da sua obra de estreia. É Francis Ford Coppola, o produtor de “THX 1138”, quem sugere a Lucas um novo filme, permitindo-lhe a rodagem de “American Graffiti”. Do insucesso ao êxito foi o per­curso. “American Graffiti” bate records de público na América e colecciona diversos prémios da crítica, catapultando o nome de Lucas do anonimato para a feérica celebridade. Há quem diga, por essa altura, nos jornais americanos, que George Lucas é já um “mestre”. Com o exagero proverbial neste estilo de coisas muito à americana, fala-se no melhor filme de 1973, no melhor argu­mento, na melhor direcção ... As diversas nomeações para os Oscars da Academia parecem ter confirmado o êxito ...
A descoberta da história imediata foi uma constante do cinema americano dessa época. As últimas décadas da história ianque estão na base de numerosas obras cinematográficas, desde a trágica depressão económica dos anos 20 até à geração de 60, rememorada por George Lucas nesta película. Fomos assim assistindo a reconstituições cada vez mais próximas da realidade actual. Reconstituições que não se satisfazem somente com certas zonas “características” e “pitorescas” das últimas décadas. Filmes como “Lua de Papel”, de Bogdanovich, “Verão de 42”, de Robert Mulligan, ou “The Last Picture Show”, de novo de Bodganovich (não falando de outras menos conseguidas), procuram recriar um clima histórico, definindo uma mentalidade dominante, sobretudo no que se refere à juventude. Juventude que, melhor que qualquer outro grupo social, delimita um tempo e um lugar, pois enquanto por um lado afirma um futuro, por outro denuncia um passado, nomea­damente na oposição a uma geração anterior, a dos seus pais.
Em “American Graffiti” são os jovens de 62 que ocupam o lugar central. “Onde estavam vocês em 62?” pergunta a publi­cidade americana. Em 62, no filme de George Lucas, vamos encontrar meia dúzia de adolescentes numa pequena cidade norte-americana do Estado da Califórnia. A grande maioria desses jovens despede-se do liceu. Uns irão trabalhar na cidade que se fecha para os receber, amordaçando-lhes a vontade e a energia. Outros preparam-se para voar até outras cidades, onde irão prosseguir os estudos. É numa noite de verão que tudo se irá passar. A noite de despedida para alguns, que acaba por ser a noite de despedida de um único. Aquele que consegue reunir a coragem necessária para a ruptura.
Na vida americana, o cinema bem o vem dizendo repetidas vezes, o carro ocupa lugar de destaque. Como sintoma de prestígio social. Como arma, como elemento erótico por excelência. Em inícios da década de 60, o carro era o símbolo preponderante na emancipação do adolescente americano. Viria depois, alguns anos mais tarde, a ser substituído pela moto (filmes como “The Wild Angels”, de Roger Corman, “Easy Rider”, de Dennis Hopper, ou “Little Fauss and Big Halsey”, de Sidney J. Furie, documentam exemplarmente o papel dominante, e algo fetichista, da motorizada na vida dos jovens-errantes da América). Mas, em 1962, nas noites quentes e desocupadas da Califórnia, o carro era signo da passagem à maturidade, sintoma viril de quem se apresta a dominar, e começa por dominar a máquina, passaporte seguro para aventuras sensuais de resultados duvidosos, mas promissores. “American Graffiti” documenta essa noite americana e o bailado dos automóveis percorrendo as ruas da cidade, caminhando pelo conhecido e aventurando-se até ao subúrbio, já misterioso, já arrojo.
Em tirocínio para voos mais largos, ou para a aceitação dolorosa do provincianismo burguês e pacato, os jovens de “American Graffiti” são os adolescentes que, tendo 17 ou 20 anos em 62, ocupam depois lugares correspondentes na hierarquia do estado da Califórnia. O carro que manuseavam como brinquedo de luxo em 62, transformou-se, dez anos mais tarde, no desesperado bólide de “Vanishing Point” (Corrida contra o Destino), de Richard Sarafian, ou no amedrontado automóvel de caixeiro-viajante de “Duel” (Um Assassino pelas Costas), de Steven Spielberg (73).


Em banda sonora, o Wolfman comanda o rock and roll atirando para o ar com os êxitos do momento, que irão encher de paixão e agressividade a madrugada inebriante. O disc jockey comanda a dança à distância, com a voz aveludada do mistério insondável. Perdida na noite, a adolescência regurgita de sinais inquietantes. Que se passa na América de 62? Aparentemente nada. Isolados do mundo na sua pequena aventura provinciana, estes jovens desamparados disputam entre si a primazia da velocidade, numa louca e gratuita corrida contra o destino. Os que em 44 se oferecem para a frente da batalha na Europa, os que em 54 são “voluntários” para a Coreia, em 62 estampam-se na estrada, porque tudo é melhor do que apodrecer. Eles serão os grandes reforços para o Vietname.
Retrato por vezes amável, outras vezes dramático de uma geração, “American Graffiti” vale sobretudo como elemento de poderosas ilações sociológicas. “Como se vivia, na noite americana, no verão de 62? Onde estavam vocês em 62?”.
De resto, o filme é uma magnífica panorâmica sobre um imaginário mítico norte-americano, desde o drive-in aos néons, do guarda-roupa à maquilhagem, dos carros à nostálgica música dos anos dourados do rock, da cor ambiente ao fascínio da loura no seu T-Bird. Para conseguir uma certa intimidade neste cenário majestoso de San Fernando Valley, Lucas opta por articular uma narrativa muito bem montada entre planos gerais ou de conjunto com outros, aproximados ou mesmo close ups.
Falando deste filme com o seu quê de mágico, George Lucas confessou: “Tudo o que se passa em “American Graffiti” me aconteceu, mas, de certo modo, conferi-lhe um determinado tom de fascínio e encanto. Passei quatro anos da minha vida atravessando as ruas da minha cidade natal, Modesto, na Califórnia. Passei por tudo aquilo: conduzi carros, comprei bebidas alcoólicas, persegui raparigas na rua... Penso que muitas pessoas fazem o mesmo, e essa ideia está reflectida no próprio título do filme, uma verdadeira experiência americana”.

AMERICAN GRAFFITI: NOVA GERAÇÃO
Título original: American Graffiti

Realização: George Lucas (EUA, 1973); Argumento: George Lucas, Gloria Katz, Willard Huyck; Produção: Francis Ford Coppola, Gary Kurtz; Música: Kim Fowley, Kim Fowley, Karin Green (coordenadores); Fotografia (cor): Jan D'Alquen, Ron Eveslage; Montagem: Verna Fields, Marcia Lucas, George Lucas; Casting: Mike Fenton, Fred Roos, Ann Brebner; Direcção artística: Dennis Lynton Clark; Coreografia: Toni Basil; Decoração: Douglas Freeman; Guarda-roupa: Aggie Guerard Rodgers; Maquilhagem: Bette Iverson, Gerry Leetch; Direcção de Produção: Jim Hogan; Assistentes de realização: Ned Kopp, Charles Myers; Departamento de arte: Doug von Koss; Som: Walter Murch, James Nelson, Art Rochester, Michael Evje; Companhias de produção: Universal Pictures, A Lucasfilm Ltd / Coppola Co. Production; Intérpretes: Richard Dreyfuss (Curt), Ron Howard (Steve), Paul Le Mat (John), Charles Martin Smith (Terry), Cindy Williams (Laurie), Candy Clark (Debbie), Mackenzie Phillips (Carol), Wolfman Jack (Disc Jockey), Bo  (Joe), Manuel Padilla Jr. (Carlos), Beau Gentry (Ants), Harrison Ford (Bob Falfa), Jim  (Holstein), Jana Bellan (Budda), Deby Celiz (Wendy), Lynne Marie Stewart (Bobbie), Terence McGovern (Mr. Wolfe), Kathleen Quinlan, Timothy F. Crowley, Scott Beach, John Brent, Gordon Analla, John Bracci, Jody Carlson, Del Close, Chuck Dorsett, Stephen Knox, Joe Miksak, George Meyer, James Cranna, Johnny Weissmuller Jr., William Niven, Al Nalbandian, Bob Pasaak, Christopher Pray, Susan Richardson, Fred Ross, Jan Dunn, Charlie Murphy, Ed Greenberg, Herby & the Heartbeats (Flash Cadillac And The Continental Kids), etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos.

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